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Arquitectura Popular Urbana
Apontamentos para uma proposta
em torno da construção espontânea
Tendemos
a definir, de forma por vezes até romântica, a arquitectura não erudita, que
aceitamos como herança cultural de tempos antigos, como vernacular ou popular. As
manifestações similares que se dão na contemporaneidade, sobretudo em contexto
urbano, que poderíamos identificar como processos espontâneos de produção, são
genericamente denominados como construção
clandestina, lugar-comum dado à arquitectura sem arquitecto.1
Que possibilidade
resta para encarar a construção
clandestina como arquitectura popular, ou melhor, como uma derivação
contemporânea desta?
Certamente
esta afirmação vem estabelecer um compromisso. De certa forma, tomando
consciência do problema nestes termos, vemo-nos forçados a agir. Reconhecemos
que se trata de um acto ilegal, por demais evidente, por não encontrar
hospitalidade nas leis dos Estados. Recusamos no entanto a tomar a questão como
um manifesto ou reivindicação exclusivamente política, este é uma questão
transversal. Vemo-la como arquitectos.
Colocamos
de novo a questão: que compromisso podemos estabelecer perante a denominada construção clandestina?
Abordamos
o problema na sua complexa heterogeneidade apenas tocando pontos dispersos da
sua geografia. Procuramos estruturar um
conjunto de premissas, de reconhecimento e de formação da possibilidade da
reconstrução popular enquanto processo de reabilitação urbana viável e, em
certos casos, o único possível. Trata-se de uma tomada de posição, uma resistência face a uma lógica
homogeneizadora de fazer cidade; aqui se postula a urgência de tomar o
habitante e o cidadão no centro do processo. Face a tal urgência tomamos a
reconstrução popular, as intervenções sobre o espaço da casa que efectivamente
formalizam essa emancipação do habitante como ponto de partida para reequacionar
formas mais justas de habitar a cidade.
Não pretendemos
aqui defender a construção ilegal em si. Não pretendemos igualmente defendê-la
na sua vulnerabilidade. Antes procuramos a sua validação naquilo que tem de
qualidade, de carácter, de adaptado e de viável. A arquitectura clandestina que aqui pretendemos referir manifesta-se
de múltiplas formas, desde as instalações provisórias de sem-abrigo às acções
reabilitação urbana, passando pelo realojamento. Nomeá-las não produz qualquer
efeito, registe-se, mas saber desta amplitude permite-nos definir um campo de
intenções e de actuações mais precisas para que daí resultem propostas
informadas e viáveis. Reconhecemos a sua existência e reclamamos um olhar
atento perante a arquitectura sem arquitectos, inquérito à sua clandestinidade.
Estes processos de construção são muitas vezes a forma mais justa – e a única
possível – dos habitantes melhorarem ou manterem as suas existências,
enfrentando, além de todas as condicionantes que os votam à condição de
‘ilegais’, a resistência e oposição da parte pública, que quando não se limita
a desintegrar estas realizações para promover o realojamento em condições
desagregadoras e equivocadas promove formas e processos de ‘reabilitação’
insólitos.
Em
muitos casos, a evolução e as estratégias empregadas nestas construções
contribuem para a criação de modelos de referência, seja pela optimização do
espaço numa lógica de ocupação faseada, pela diversidade na habitação segundo
uma lógica evolutiva ou pela exploração tecnológica de materiais e sistemas
construtivos. Este reconhecimento, o estudo deste modelos, a sua divulgação e
aplicação em outros contextos é contributo que a comunidade, em várias frentes,
tem vindo a fazer. Propomos extrair deste (re)conhecimento meios para uma
estratégia de validação do que podemos chamar Arquitectura Popular Urbana.
Algumas frentes:
Reabilitação
Urbana: A permanência da matéria que dá continuidade aos espaços que herdamos e
habitamos exige manutenção e reabilitação. Nem sempre dispomos dos meios
necessários para que se mantenham dignamente. Se um dos problemas do centro
histórico é a inadaptação das casas aos novos usos, às exigências dos novos
habitantes, se os novos habitantes são cada vez mais de posses escassas, uma
forma de conhecer as possibilidades que as casas permitem é visitar as que se
encontram ocupadas, porque esta população é de hoje, tem as exigências de hoje.
As suas formas de ocupação são inventivas e adaptadas, integradas enquanto
parceiros nos processos de reabilitação informariam certamente mais e melhor
propostas futuras.
Autoconstrução:
A iniciativa dos autoconstrutores, mais ou menos pobres, que fintam a
legislação por não se enquadrarem nos padrões de produção requer atenção, pois
simultaneamente nos dá notícia da desadequação do mercado face aos anseios e/ou
possibilidades dos habitantes e da inventividade ou intuição arquitectónica do homem. Os padrões são normalmente
cativos de lógicas de mercado, essa é a sua finalidade, constituírem um
produto. Não serão, por certo, consensuais entre a comunidade de técnicos que
lhes é afecta. Não consensual por entre os técnicos será também o resultado da
autoconstrução, talvez nesta extensão se estabeleça a possibilidade de um
contributo efectivo com uma visão mais lata e informada sobre estes processos.
Expansão/Transformação:
Habitar é uma condição da vida. A construção desse território constitui em si
um processo dinâmico e muitas vezes se estabelece numa relação oficinal entre o
homem e a casa. As intervenções no espaço doméstico em jeito de bricolage são recorrentes e uma possível
via de transformação do espaço naquilo que ele tem de resposta às expectativas
e mutantes necessidades dos seus habitantes.
É certo
que a preparação de uma proposta concreta que viabilize as frentes de actuação
naquilo que podemos chamar de Arquitectura Popular Urbana irá certamente
revelar-se um processo complexo e que deverá exigir uma ampla rede de
colaboração. É certo também que a construção clandestina é uma questão que diz
respeito a grande parte das cidades actuais e que o seu histórico é já
demasiado longo.
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Notas
bibliográficas
[1] Em
descrição de candidatura ao Prémio Miguel Portas 2013 do projeto ‘O Doméstico Saiu à Rua’ desenvolvido por
Mónica Loureiro, João Gaspar e Paulo Pimenta.
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Fotografia
Paulo
Pimenta
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Mónica
Loureiro é mestranda na Faculdade de Arquitectura da Universidade
do Porto, ao abrigo de um protocolo de mobilidade frequentou durante um ano a
Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da Universidade Eduardo Mondlane
em Maputo. Foi co-autora do projecto O
Doméstico Saiu à Rua no âmbito Manobras
no Porto’2012.