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Uma outra cidade
para uma outra vida
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Constant
Preâmbulo
(…)
New Babylon where, under one roof, with the aid of moveable elements, a shared
residence is built; a temporary,
constantly remodelled living area; a camp for nomads on a planetary scale [1]
Constant [2]
Graças
a Francisco Alves, tradutor da principal obra de Guy Debord [3], ‘A Sociedade do Espectáculo’ [4], tive acesso directo à interessante colecção
de boletins denominados ‘Internationale Situationiste’, editados pela
organização com o mesmo nome [5]. Tanto a Internacional Situacionista,
movimento profundamente subversivo e revolucionário e um dos responsáveis pelo
eclodir do Maio de 68, como a própria edição, foram conduzidos por Guy Debord. Uma exposição mais alargada sobre a
importância do pensamento de Guy Debord e dos seus “compagnons de routes”, e a
notável actualidade do seu discurso artístico e literário está fora do âmbito
deste pequeno trabalho mas mereceriam, certamente, maior divulgação em língua
portuguesa. A descoberta deste pequeno texto de
1959 de Constant Nieuwenhuys, artista holandês nascido em 1920, no meio dos
inúmeros artigos que integram as doze revistas editadas em França entre 1958 e
1969, surpreendeu-me tanto pela frescura da “utopia” [6] que transmite, como pela profunda
crença na capacidade do homem mudar a sua vida em sociedade, partindo de uma
alteração radical do desenho da cidade. Ao longo da tradução, a primeira que se
saiba em língua portuguesa, procurei respeitar não só o sentido das palavras do
autor, evitando aprimorar a linguagem, como a própria localização dos desenhos
ao longo do texto, criando ainda espaço para, neste preâmbulo, dar a conhecer
algumas imagens da ‘New Babylon’ cidade futurista projectada por Constant onde a
exaltação da aglomeração e a criação de situações e ambiências são o principal
alicerce. Durante anos, quase vinte, Constant procurou dar sentido a uma visão
da urbe como obra de arte total, expondo o seu pensamento em diversos textos,
desenhos e maquetas, podendo considerar-se o artigo que agora se apresenta,
como um dos fundadores desta visão radical, cuja influência na arquitectura
contemporânea importaria ainda aprofundar. As questões que coloca, mais do que
a proposta em si, parecem-me ser ainda hoje de grande proveito e a merecerem
uma profunda meditação. Qual será afinal o papel das cidades do futuro quando
se prevê que dentro de poucos anos será aí que viverá a maior parte da
humanidade? Muito mais haveria a dizer sobre o que foi a Internacional
Situacionista e sobre o fascínio que continua a exercer em todos aqueles que
acreditam que só através de um constant(e) combate será possível desmascarar o
espectáculo montado que cada vez mais nos rodeia.
Maria de Magalhães Ramalho
Uma outra cidade para uma outra
vida*
A
crise do urbanismo agrava-se. A construção de bairros, antigos e novos, está em
desacordo evidente com os modos de comportamento estabelecidos, e mais ainda
com os novos modos de vida que procuramos. O ambiente morno e estéril da nossa
envolvente resulta disso.
Nos
antigos bairros, as ruas degeneraram em autoestradas, os entretenimentos são
comercializados e pervertidos pelo turismo. Os contactos sociais tornaram-se
impossíveis. Os bairros recém-construídos não têm mais que dois temas que tudo
dominam: a circulação automóvel e o conforto do lar. Eles são uma pobre
expressão do bem-estar burguês, e toda a preocupação com o lúdico está aí
ausente.
Perante
a necessidade de construir rapidamente cidades inteiras, estamos em vias de
construir cemitérios de betão armado onde grandes massas de população estão
condenadas a aborrecer-se de morte. Ora para que servem as mais espantosas
invenções técnicas que o mundo tem agora à sua disposição, se faltam condições
para delas retirar proveito, se elas não acrescentam nada ao lazer, se falta
imaginação?
Nós
reclamamos a aventura. Não a encontrando mais na terra, alguns vão procurá-la
na lua. Nós apostamos primeiro, e sempre, numa mudança na terra. Propomo-nos
criar situações e situações novas. Contamos quebrar as leis que impeçam o
desenvolvimento de actividades eficazes na vida e na cultura. Encontramo-nos no
alvorecer de uma nova Era, e tentamos esboçar já a imagem de uma vida mais
feliz e de um urbanismo unitário; o urbanismo feito para agradar.
Bairro de uma cidade tradicional. Espaço social virtual: a rua.
As ruas, logicamente criadas para a circulação, são utilizadas marginalmente como espaços de encontro.
O
nosso domínio é portanto a rede urbana, expressão natural de uma criatividade
coletiva, capaz de compreender as forças criativas que se libertam com o
declínio de uma cultura baseada no individualismo. Somos de parecer que as
artes tradicionais não poderão desempenhar um papel na criação da nova
ambiência em que queremos viver.
Estamos
em vias de inventar novas técnicas; examinamos as possibilidades que oferecem
as cidades existentes; fazemos maquetes e planos para cidades futuras. Estamos
conscientes da necessidade de nos servirmos de todas as invenções técnicas, e
sabemos que as construções futuras que temos em vista devem ser suficientemente
flexíveis para responder a uma concepção dinâmica da vida, criando uma
envolvente em relação directa com modos de comportamento em incessante mudança.
Cidade verde. Unidades de habitação isoladas. Espaço social mínimo:
os encontros apenas acontecem por acaso e individualmente nos corredores ou no
parque. A circulação domina tudo.
A
nossa concepção de urbanismo é portanto social. Opomo-nos à concepção de uma
cidade verde, onde os arranha-céus espaçados e isolados devem necessariamente
reduzir os relacionamentos directos e a acção comum dos homens. Para que a
relação estreita entre a envolvência e o comportamento se produzam, a
aglomeração é indispensável. Aqueles que pensam que a rapidez das nossas
deslocações e a possibilidade das telecomunicações vão dissolver a vida comum
das aglomerações, conhecem mal as verdadeiras necessidades do homem. Contra a
ideia de uma cidade verde, que a maior parte dos arquitectos modernos
adoptaram, nós traçamos a imagem de uma cidade coberta, onde o plano das
estradas e dos edifícios separados, deu lugar a uma construção espacial
contínua, separada do solo, que incluirá tanto grupos de alojamentos, como de
espaços públicos (permitindo modificações de destino segundo as necessidades do
momento). Como toda a circulação, no sentido funcional, passará por baixo, ou
nos terraços por cima, a rua é suprimida. O grande número de diferentes espaços
atravessáveis de que a cidade é composta, formam um espaço social complicado e
vasto. Longe de um retorno à natureza, da ideia de viver num parque, como em
tempos os aristocratas solitários, nós vemos nessas construções imensas a
possibilidade de vencer a natureza e de submeter à nossa vontade o clima, a
claridade, os ruídos nestes diferentes espaços.
Princípios de uma cidade coberta.
«Plano» espacial. Habitação colectiva suspensa; alargada a toda a cidade e
separada da circulação que passa por cima e por baixo.
Será
que por isto entendemos um novo funcionalismo que vai colocar ainda mais em evidência
a vida utilitária idealizada? É preciso não esquecer que, uma vez estabelecidas
as funções, sucede-lhes o jogo. Desde há muito a arquitectura tornou-se um jogo
de espaço e de ambiência. A cidade verde tem falta de ambiências. Nós queremos,
ao contrário, servimo-nos disso mais conscientemente; e que elas correspondam a
todas as nossas necessidades.
As
cidades futuras que nós perspectivamos oferecerão uma variedade inédita de
sensações neste domínio, e jogos imprevistos serão possíveis pelo uso inventivo
das condições materiais, como o acondicionamento do ar, a sonorização e a
iluminação. Os urbanistas estão já a estudar as possibilidades de harmonizar a
cacofonia que reina nas cidades actuais. Não tardará que se encontre aí um novo
domínio de criação, tal como em outros problemas que vão surgir. As viagens no
espaço que se anunciam, poderiam influenciar este desenvolvimento, porque as
bases que se estabelecerão noutros planetas colocarão imediatamente o problema
das cidades abrigo que talvez serão do tipo do nosso estudo sobre o urbanismo
futuro.
As
alturas da cidade
Antes
de tudo, porém, a diminuição do trabalho necessário para a produção, por uma
automação extensiva, criará a necessidade de lazer, uma diversidade de
comportamentos e uma mudança da natureza dos mesmos, que levarão forçosamente
uma nova concepção de habitat colectivo com o máximo de espaço social,
contrariamente à concepção de uma cidade verde em que o espaço social está
reduzido ao mínimo. A cidade futura deve ser concebida como uma construção
continua sobre pilares, ou então como um sistema contínuo de construções
diferentes, nas quais são suspensos locais para alojamento, recreio etc., e
locais destinados à produção e à distribuição, deixando o solo livre para a
circulação e reuniões públicas. A aplicação de materiais ultra leves e
isolantes, como os que experimentamos actualmente, permitirá uma construção
ligeira e de suportes muito espaçados. De tal modo que se poderá constituir uma
cidade de várias camadas: subsolo, rés-do-chão, andares, terraços, de uma
extensão que pode variar de um bairro actual a uma metrópole. É de notar que
numa tal cidade a superfície construída será de 100% e a superfície livre de
200% (chão e terraços), enquanto nas cidades tradicionais os números são de uns
80% e 20%; e na cidade verde esta relação pode, no máximo, ser invertida. Os
terraços formam um espaço ao ar livre que se estende sobre toda a área da
cidade, e que podem ser espaços para desportos, aterragem de aviões e
helicópteros e para a manutenção de uma vegetação. Eles serão acessíveis por
todo lado através de escadas e de elevadores. Os diferentes andares serão
divididos em espaços vizinhos e comunicantes, artificialmente acondicionados,
que oferecerão a possibilidade de criar uma infinita variação de ambiências,
facilitando a deriva dos habitantes, e os seus frequentes encontros fortuitos.
As ambiências serão regularmente e conscientemente modificadas, com a ajuda de
todos os meios técnicos, pelas equipas de criadores especializados que serão, portanto,
situacionistas de profissão.
Um
estudo aprofundado sobre os meios de criação de ambiências e da influência
psicológica das mesmas, é uma das tarefas que estamos actualmente a realizar.
Os estudos respeitantes à realização técnica de estruturas portantes e sua
estética, é a tarefa específica dos artistas plásticos e dos engenheiros. A
contribuição destes últimos principalmente, é de uma necessidade urgente para
obter progressos no trabalho preparatório que levamos a cabo.
Corte
transversal da cidade coberta
Se o
projecto que acabámos de traçar em grandes linhas corre o risco de ser
considerado um sonho fantasioso, nós insistimos no facto de que ele é
realizável do ponto de vista técnico, que ele é desejável do ponto de vista
humano e que ele será indispensável do ponto de vista social. A insatisfação
crescente que domina toda a humanidade chegará a um ponto em que seremos todos
levados a executar projectos para os quais temos meios; e que podem contribuir
para a realização de uma vida mais rica e realizada.
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* Une autre ville pour une autre vie - Internationale
Situationniste, número 3, Dezembro, 1959, p. 37-40. Director: G. E. Debord. Este
boletim, órgão de propaganda da IS, teve 12 números publicados entre 1958 e
1969. Ver artigo original em: http://www.larevuedesressources.org/IMG/pdf/internationale_situationniste_3.pdf.
Tradução de Maria de Magalhães
Ramalho com o apoio amigo de Francisco Alves a partir da edição original.
Janeiro de 2014
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Notas do
preâmbulo
(1)
New
Babylon - A nomadic town, texto de Constant para o catálogo da
exposição do Gemeetenmuseum
editado pela Haags em 1974. Ver http://www.notbored.org/new-babylon.html.
(2)
Constant Anton Nieuwenhuys (1920-2005) – pintor e
escultor holandês, nascido em Amesterdão, cofundador do Movimento Cobra
(1948-1951) pertenceu à secção holandesa da Internacional
Situacionista até se demitir no Verão de 1960. Foi responsável pela
concepção da New Babylon,
inicialmente com o apoio de Guy Debord, um projecto que o autor considerou
sempre ser realizável. Com este projecto Constant pretendia criar uma cidade
futurista, baseada na alta tecnologia e na ideia de um urbanismo unitário, uma
cidade destinada ao Homo Ludens em
contraponto à actual cidade feita para o Homo
Faber. Sobre Constant ver : http://www.notbored.org/constant.html.
(3) Guy
Debord, que gostava de ser conhecido mais como cineasta, foi na realidade um
dos grandes filósofos do século XX que soube aliar, como poucos, o pensamento e
a sua prática na vida quotidiana. Nascido em 1931 em Paris, acabou por se
suicidar em Auvergne, a 30 de Novembro de 1994, numa altura em que estava já
muito doente. Para além de se ter envolvido em vários combates políticos que
marcaram a Europa dos anos 60, foi responsável pela criação da Internacional
Situacionista (IS) em 1957, importante movimento vanguardista de crítica à
sociedade de consumo como forma avançada de alienação dos indivíduos, onde o
espetáculo substituiu a própria realidade. A IS, cujo epicentro foi Paris,
manteve-se activa de 1957 a 1972, congregando diversas delegações espalhadas
pelo mundo. Os seus membros, nunca em grande número, eram sobretudo artistas e
escritores e o seu papel foi determinante para o eclodir do Maio de 68.
(4) DEBORD, Guy - A Sociedade do Espectáculo. Edição Antígona, Lisboa, 2012. Segundo
Anselme Jappe, Debord explica nesta obra que o espectáculo é uma forma de sociedade em que a vida real sendo pobre e
fragmentária os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente
as imagens de tudo o que lhes falta na sua existência real (http://guy-debord.blogspot.pt/2009/06/arte-de-desmascarar.html).
Ver JAPPE, Anselme - Guy Debord,
Edição Antígona, Lisboa, 2008.
(5)
Nada, jamais, irá substituir o prazer de contactar
com as verdadeiras revistas e as suas fantásticas capas metálicas. À falta de
melhor consultar: http://www.larevuedesressources.org/internationale-situationniste-integrale-des-12-numeros-de-la-revue-parus-entre-1958-et,2548.html.
(6) Conforme referido Constant insistiu sempre que
este era um projecto realizável.
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Imagens
1.
Nova Babilónia Maquete (Gemeetenmuseum). In : http://www.gemeentemuseum.nl/en/masterpieces/themes/new-babylon
2. Constant em 1958. Arquivos da Cidade Amesterdão
(MAI). In: http://www.ambassade-hotel.nl/art-culture/art-collection/artists/constant/
3. Nova Babilónia Maquete, 1959 (Gemeetenmuseum). In:
http://fromztoa.net/?p=1437)