Democratizar o espaço,
democratizar o território
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Entrevista a Boaventura de Sousa Santos por Susana Caló
Introdução
A presente conversa com Boaventura de Sousa Santos
aconteceu a 27 de Julho de 2012 no Centro de Estudos Sociais (CES), em Coimbra.
Sociólogo, e com um extenso trabalho sobre a sociologia do direito, novos
constitucionalismos, movimentos sociais, globalização, epistemologia,
democracia, interculturalidade e direitos humanos, foi também um dos criadores
do Fórum Social Mundial (FSM). Esteve envolvido no processo que conduziu à
elaboração de uma nova Constituição no Equador em 2008, que reconheceu pela
primeira vez direitos à natureza segundo o conceito indígena das comunidades
originárias de "Terra-mãe" ou "Pachamama". Como crítica à
subalternatização epistémica das práticas do Sul Global criou ferramentas
conceptuais como o de "epistemologia do Sul" e "ecologia das
práticas" em defesa da diversidade epistémica do mundo e a horizontalidade
entre saberes e práticas. Nesse
sentido, relativamente ao papel ético e político da teoria, propõe que se faça
uma teoria de rectaguarda, que possa teorizar aberturas para a realidade
concreta, e que acompanhe as lutas dos movimentos sociais. A sua mais recente
investigação ALICE, Espelhos Estranhos,
Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um Novo Modo de Partilhar as
Experiências do Mundo tem como objectivo a renovação de paradigmas teóricos
e políticas de transformação social a partir das epistemologias do Sul, dividindo-se
em 4 áreas: democratização da democracia; constitucionalismo transformador,
interculturalidade e reforma do estado; outras economias; direitos humanos e
outras gramáticas de dignidade humana.
Partindo do contexto português e explorando a ideia de
Ibero-América, o objectivo desta entrevista foi o de interrogar a dimensão política
e social do espaço e as dinâmicas territoriais do poder.
Trata-se de uma conversa que vai desde as lutas pelo
direito à terra, de comunidades agrícolas ou populações indígenas, até a lutas
urbanas e sobre o espaço público. Enquanto que na Europa parecem mais
proeminentes os debates em torno ao espaço público, à justiça urbana e à
habitação, na América Latina as lutas pelo espaço são mais notórias sob a forma
das lutas pelo direito à cidade, pelo direito à terra e pela ordenação do
território. Porém, em todos estes movimentos debate-se a ideia de que não se
trata só do espaço ser um dispositivo cénico de lutas sociais, mas de ser o
próprio objecto da luta. Por isso deu-se especial atenção à necessidade de inventar
formas de articulação entre movimentos sociais e instituições, assim como
linhas de formalização entre uma micro e uma macro-política.
Finalmente importa interrogar: de que modo é que práticas
espaciais poderão gerar possibilidades para a exponenciação de processos de
autonomização cívica e emancipação social?
*
Susana Caló - Noções como Ibero-América ou América Latina são
problemáticas na medida em que promovem uma visão unitária do território
reflectida na produção de imaginários e ficções hegemónicas, desde as ficções
coloniais às ficções nacionalistas. Começava por perguntar como se podem
constituir discursos e práticas contra-hegemónicas perante concepções
dominantes sobre a terra e o território e de que modo estas são relevantes?
Boaventura de Sousa Santos -
Começando pelo conceito problemático de Ibero-América, ele é problemático se
não formos capazes de o construir e ver a sua raiz histórica. O conceito
privilegia as relações entre a América e os povos que a colonizaram. Os povos
indígenas são americanos, mas não são ibéricos, são povos originários. Os povos
afrodescendentes são americanos, mas não são ibéricos, são de origem africana.
Obviamente o conceito revela a tentativa, por um lado, de criar a ideia de um
espaço que estaria fora do espaço hegemónico do colonialismo, que a partir do
séc. XVII é inglês e não ibérico. Porque o domínio do mundo colonial depois do Siglo del Oro da Espanha e da crise de
Portugal passa, a partir do séc. XVII, para outras regiões do mundo, para a
Holanda e depois para a Inglaterra e, portanto, o espaço da Ibero-América no
fundo é um espaço colonial subalterno e que se constrói como tal. Mas,
obviamente tem também dentro de si uma relação colonial muito desigual,
sobretudo se tivermos em mente que, precisamente por Portugal ser uma potência
semiperiférica e não desenvolvida, não tinha sequer condições naquela altura de
poder fazer o que mais tarde se chamaria "settlers colonialism", colonialismo de ocupação directa
e intensa. Usou-se uma forma de colonizar privatizando as terras das colónias
através das capitanias e das concessões de terra. Dignitários da corte ou
indivíduos que participavam nas expedições ficaram com um grande controlo e
concentração de terras na América Latina. E é daí que mais tarde vem toda a
luta social à volta da terra. Ela inscreve-se na história colonial da terra,
sobretudo a concentração da terra que, com a entrada das culturas coloniais,
como a plantação de açúcar, ou de café, obrigou a deslocações massivas de
populações internas de um lado para o outro. E é nessa lógica de geopolítica da
terra e do território que os indígenas foram atirados para regiões menos
férteis. E essa grande cultura Andina que nós temos hoje na América Latina e
esse espaço extraordinário Andino é também, em parte, produto dessa
colonização, porque os indígenas estavam nas planícies e foram depois expulsos
dessas terras, que eram melhores para a agricultura. Há, portanto, toda uma
história da Ibero-América que condiciona as lutas do presente sobre a terra - e
elas hoje existem a um nível mundial. A questão da terra e do território é hoje
cada vez mais relevante e por isso quando me pergunta como se constrói um
discurso e uma prática contra-hegemónica em relação às construções da terra e
do território dominantes, julgo que temos que ter em mente os dois parâmetros
que construíram as ideias dominantes de território na contemporaneidade. E eles
foram, por um lado, o colonialismo, por outro lado, o capitalismo. E estes
juntaram-se de alguma maneira, porque a pulsão colonialista do início foi
depois complementada pela pulsão capitalista na criação de uma agricultura
industrial e de grande dimensão, que vai continuar a criar uma grande
desigualdade nesses países.
A questão
da terra esteve sempre presente – e, por isso, os movimentos contra-hegemónicos
são movimentos que lutam pela terra e pelo território. Mas qual é a diferença
entre terra e território? É que os movimentos que lutam pela terra vão ser os
movimentos camponeses, que são populações que hoje em boa parte são indígenas
ou afrodescendentes, mas que na altura não eram consideradas como tal. Eram considerados
camponeses - cuja grande reivindicação é a reforma agrária, é a luta pela
terra, pela distribuição mais equitativa da terra. Essa luta vem até ao
presente e tem como resultado que o movimento social mais importante da América
Latina é o Movimento Sem Terra (MST)
no Brasil com articulações hoje em muitos países e cuja constituição em 1986
assenta na luta pela terra e pela reforma agrária. Mas essa luta, que esteve
sempre presente, torna-se politicamente mais visível a partir dos anos 90
através da luta dos povos indígenas pelo território. A diferença entre a luta
pela terra e a luta pelo território é que para os povos indígenas o território
não é apenas a terra agrícola, mas é a raiz mesma da sua identidade cultural.
São os seus antepassados, a sua cultura, as suas árvores sagradas, os seus rios
sagrados, é, portanto, toda uma memória histórica que foi destruída ou quase
destruída pelo colonialismo e capitalismo e que eles querem recuperar. E
recuperaram ao ponto de na Constituição da Bolívia de 2009 e na Constituição do
Equador de 2008 se passar a assumir a ideia de que os povos são plurinacionais,
isto é, que os povos indígenas têm direito a uma autonomia territorial, também
em termos geopolíticos. Não são territórios independentes, mas têm uma autonomia
que, por exemplo, não é apenas a da região da Madeira, é outro tipo de
autonomia que não é meramente administrativa ou política de carácter
eurocêntrico, mas que assenta no reconhecimento de que há outras cosmovisões,
outras culturas, outras formas de administrar o território que devem ser
reconhecidas como tal. Portanto, a luta pela terra e pelo território, hoje, é
uma luta contra a herança colonialista e capitalista neste espaço.
Susana Caló - As
lutas em torno ao direito à terra e ao território têm sido um dos principais
tópicos de diversos movimentos sociais pelo mundo inteiro, contra aquilo que
designa de fascismo territorial - formas de dominação e exploração do
território com carácter colonial - e na defesa também de concepções ecológicas
da territorialidade, poderíamos falar dos casos do petróleo ou da extracção
mineira. Parece-lhe possível a implementação com sucesso de reformas agrárias,
assim como a sua manutenção, perante as pressões capitalistas?
Boaventura de Sousa Santos - É uma excelente pergunta porque a questão da terra e
do território mudou e não apenas na dimensão que já falamos, isto é, de uma
luta por uma distribuição da terra como um recurso agrícola para uma construção
política de um território com uma identidade cultural própria. Mas a terra,
hoje, já não é de modo nenhum nem só a agricultura, nem só o território - é a
reserva da biodiversidade - que é um problema completamente diferente. É a
reserva agrícola, a reserva da água, os aquíferos, e é também a terra que hoje
é a base da grande orgia dos recursos naturais em que nos encontramos. Todo o
extractivismo veio também territorializar as relações económicas e políticas e
é essa a grande contradição da globalização, já que se pensava que esta ia
desterritorializar tudo: nós hoje viajamos, os produtos são feitos em qualquer
parte do mundo, o relógio é feito em seis partes do mundo, o que é que
interessa o território? Parece que para nada mas, ao mesmo tempo, uma série de factores
nos obrigam a pensar que afinal a desterritorialização é apenas um dos lados da
nossa condição. O outro lado é, em contraposição a ela, a reterritorialização.
Há coisas fundamentais que só podem ser produzidas em certos lugares: este
gravador que nós estamos a utilizar, o seu computador que tem metais especiais
raros que só existem em certos lugares, etc. Temos hoje de novo na América
Latina e em África uma corrida aos recursos naturais que faz uma pressão enorme
sobre a terra e que cria uma nova conflitualidade entre aqueles que querem a
terra para mineração e os agricultores camponeses que lá vivem.
Eu acabo
de regressar de Moçambique e vejo exactamente isso, as grandes empresas como a Rio Tinto ou a Vale do Rio Doce estão a desalojar populações inteiras para
expandir a sua mineração de carvão. Aqui, a terra não é para a agricultura,
aqui, a terra é para a exploração mineira. E também temos hoje um outro
problema que é o que as Nações Unidas designam já como "land grabing"
que é a grilhagem da terra, a compra e ocupação massiva de terra por países
estrangeiros e não apenas por empresas. Este é o caso da Arábia Saudita, e do
Kuwait que têm vindo a comprar grandes porções de terra em África como reserva
alimentar e como reserva de água. Portanto, a terra hoje está dentro de uma
geopolítica do território muito mais complexa do que aquela que nós tínhamos
anteriormente construído como o mundo rural.
Agora, a
sua referência ao fascismo territorial veio trazer uma outra questão que me tem
ocupado muito. Eu fiz o meu trabalho de doutoramento na Universidade de Yale
com trabalho de campo vivendo numa favela do Rio de Janeiro, precisamente para
tentar analisar as relações sociais e espácio-sociais dentro de uma favela onde
viviam 60 000 pessoas. Foi aí que eu me despertei para a ideia do fascismo
territorial. As próprias cidades hoje são atravessadas por uma lógica de
território que se torna fracturante, e que cria dentro delas uma linha abissal
entre as zonas que eu chamo civilizadas, das urbanizações que são cada vez mais
contra o espaço público (condomínios fechados), e as zonas selvagens onde vivem
as classes populares nos subúrbios, nos guetos e nas favelas. Estas obviamente
proliferam no mundo, uma vez que as cidades não têm capacidade de acomodar de
uma maneira que seja urbanisticamente razoável, socialmente e politicamente
decente as populações que chegam às cidades fugindo da violência rural, da
desertificação, da guerra, da ocupação selvagem das suas terras. E, portanto,
temos todas essas formas de um fascismo territorial, que constitui uma divisão
dentro de países que são homogéneos de um ponto de vista político (em que as
leis são as mesmas), mas em que, no entanto, a polícia é capaz de agir de uma
forma totalmente diferente de um lado da linha ou de outro, consoante considera
o território inimigo ou não, civilizado ou selvagem. Isto é, na construção dos
nossos países, estamos a assumir conceitos que eram conceitos de guerra contra
estrangeiros. O território do inimigo interno pode ser uma favela, um bairro da
lata, podem ser grupos terroristas ou ditos terroristas. Os próprios
territórios internos dos países estão hoje sujeitos a formas de geopolítica
interna que parecem uma importação de relações internacionais para o
território. Assim, temos também territórios que dentro do mesmo país reproduzem
relações coloniais, que é um conceito que vem dos anos 60, da América Latina,
de um grande sociólogo chamado Pablo González Casanova que terá sido dos
primeiros a escrever sobre o colonialismo interno. Isto é, quando os países
latino-americanos se tornaram independentes, o colonialismo não terminou porque
a independência não foi conquistada ou entregue às populações originárias, mas
sim aos descendentes dos colonos que tinham ido para lá. E estes foram por vezes
mais racistas que os próprios colonos. Em alguns países o genocídio de
indígenas foi superior depois da independência do que antes da independência e
criaram-se, portanto, relações internas de colonialismo.
Susana Caló - Tem
trabalhado muito sobre a importância de tornar visíveis e valorizar a
diversidade de saberes e de experiências do mundo na perspectiva das
Epistemologias do Sul. A crescente relevância política dos movimentos indígenas
da América do Sul tem aberto caminho à possibilidade de diálogo e coexistência
entre diferentes saberes e modos de vida. Como vê estes avanços?
Boaventura de Sousa Santos - Estes novos protagonismos políticos que surgiram na
América Latina tornaram uma coisa clara. É que para certos grupos sociais não
há dignidade sem território. É a grande reivindicação dos povos indígenas que
não imaginam o respeito da sua cultura e dos seus saberes sem o respeito pelos
seus territórios porque os seus saberes estão inscritos nos seus territórios.
Portanto, não há qualquer possibilidade de garantir a sua dignidade sem lhes
ser garantida a autonomia territorial. Este reconhecimento é um grande avanço
histórico. Está em perigo esse avanço? Sim, tem sido sempre contestado e está
em perigo nos países que precisamente progrediram em direcção a esse
reconhecimento. São os casos da Bolívia e do Equador porque se politicamente há
este reconhecimento devido ao protagonismo destes movimentos sociais e uma
consagração constitucional, por outro lado, isto ocorre num auge de pressão
neo-liberal por recursos naturais devido sobretudo ao desenvolvimento da China.
E, portanto, a China vai provocar o que chamamos de reprimarização da economia,
isto é, voltar àquela ideia, que é a maldição da América Latina desde o
colonialismo, de que a América Latina exporta natureza, exporta commodities, exporta recursos naturais,
exporta matérias-primas, e não bens industriais.
Países
inteiros tentaram sair dessa maldição, como é o caso do Brasil. E o próprio
Brasil, neste momento, está a explorar mais os bens primários do que os bens
industriais. Isto é, a pressão do desenvolvimento da China e de outras pressões
internacionais sobre os produtos alimentares e a especulação sobre os minérios
e, portanto, a pressão sobre a terra e o território está a fazer com que todas
as conquistas políticas estejam a ser minadas pelos próprios governos que a
instituíram. Porque as pressões do neo-liberalismo, das agências
internacionais, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, da
Organização Mundial do Comércio, lhes estão a dizer que a sua vantagem
comparada são os recursos minerais e que têm de ser explorados já. E, portanto,
iniciativas extraordinárias que se tinham desenhado para este continente estão
a retroceder como, por exemplo, uma grande iniciativa do Equador que visava
alterar por completo o modelo de desenvolvimento assente no extractivismo,
renunciando à exploração petrolífera num território que é um território
indígena. É o território da maior diversidade do mundo e chama-se Yasuní-ITT que é um parque nacional
grande e em que o Equador se propõe não explorar o petróleo precisamente
protegendo a biodiversidade e os povos indígenas, mas pedindo à comunidade
internacional que indemnize o Equador de metade das perdas em rendimentos que
vai ter com essa renúncia à exploração do petróleo. Isto é uma coisa totalmente
nova, uma inovação extraordinária para o mundo, mas é evidente que o mundo
desenvolvido, que é quem podia financiar este projecto, entretanto não só não
tinha muita vontade política, como entrou numa crise financeira e, portanto,
começa a ser claro que este projecto Yasuní-ITT não vai para a frente.
Aqui está uma grande inovação que assenta numa nova ideia de território. Porque
o problema é que para a lógica capitalista, agora neo-liberal, mas capitalista
desde sempre, o território só é válido na medida em que é explorado. Um
território deixado a monte, que não é explorado, não tem valor comercial e por
isso o capitalismo não entende a lógica da terra camponesa. Para a lógica
camponesa da terra é muito claro: a terra cansa-se, portanto, a gente tem
várias courelas de terra e num ano planta-se numa e no outro noutra para que a
terra descanse. O capitalismo não aceita que a terra descanse, como não aceita
também que o trabalhador descanse. Qual foi a inovação? Obviamente, os
fertilizantes, os insecticidas e os pesticidas que vieram permitir que a terra
esteja sempre em constante produção. Essa é uma grande alteração que se dá no
princípio do século XX na concepção que nós temos da terra porque anteriormente
havia uma concepção, se quiser, mais humana do território e da terra.
Susana Caló - De que
estamos a falar se quisermos falar da importância de defender e promover um
diálogo horizontal dos saberes e das práticas na Europa à luz do contexto actual?
Como é que se faz a tradução dessas problemáticas para a Europa? Pode o
problema ser colocado da mesma maneira tanto na Europa como na América do Sul?
Boaventura de Sousa Santos - Essas são as questões que procuro responder num grande projecto
europeu, financiado pelo European
Research Council, que estou a iniciar, o projecto ALICE. Eu cheguei à
conclusão no meu trabalho que o Norte Global e a Europa em especial têm muito
pouco para ensinar ao mundo e que o colonialismo os incapacitou para aprender
com a experiência do mundo. O colonialismo criou uma arrogância tal no
continente europeu, que se desprezam todas as inovações que possam vir do Sul
Global, porque no fundo sempre foram considerados inferiores. A reacção a
alguma coisa que vem do Brasil é "ah, isso vem do Brasil, não se aplica a
nós", da Índia, ainda pior. Ora, eu defendo que pode haver uma
aprendizagem. Não se trata de uma lição do Sul, não é uma inversão do tipo
“agora o Sul ensina o Norte”, mas é tentar criar um clima intelectual na Europa
- e aí são para mim fundamentais as epistemologias do Sul e a ecologia dos
saberes, a par dos conceitos paralelos que estou a utilizar que são a
sociologia das ausências, das emergências, e da tradução intercultural - um
contexto epistemológico que, no fundo, permita à Europa reconhecer mais
experiências do mundo e valorizar as suas origens. Como se faz isso?
Reconhecê-las nos seus próprios termos, segundo os critérios de validade
cognitiva e normativa em que se desenvolveram e, portanto, sem as confinar
apenas à grelha de análise do conhecimento e da normatividade eurocêntricos.
Quanto eu
olho para uma economia indígena, eu olho para ela do ponto de vista daquilo que
ela consegue trazer em termos de preservação de biodiversidade e cultivo de
terra. Sempre existiram extractivistas, na selva, na Amazónia. O grande activista
brasileiro, Chico Mendes, assassinado a mando de latifundiários, era um
extractivista, seringueiro, mas ecologicamente orientado. Isto é, foram sempre
os indígenas, os seringueiros, e as populações ribeirinhas que utilizaram de
uma maneira ecologicamente sustentável a floresta e os recursos naturais. Ora,
as epistemologias do Norte privilegiam formas de conhecimento e de actuação
orientadas para apenas interessar saber quanto é que se produz por ano e quão
mais se pode produzir.
Por isso,
uma das cinco ecologias tratadas em A
Gramática do Tempo é a ecologia das produtividades. Implica termos um outro
conceito de produtividade da terra que não meramente baseado no ciclo de
produção e que promove o uso negligente de agrotóxicos. Há aqui uma grande
transformação em que as conquistas da diversidade e da biodiversidade estão na
mira de um desenvolvimento neoliberal.
Recentemente
tive duas experiências pessoais com muito impacto: a que já mencionei, em
Moçambique, onde fui informado da expulsão de populações de camponeses das suas
terras para fazer avançar a mineração e, a outra, quando atravessei a Pampa
argentina em Maio, totalmente tomada pela cultura da soja transgénica e dos
agrotóxicos. Nós passamos por lá e não nos acontece nada, mas já há uma
consequência perversa e trágica: Río Cuarto, que é uma cidade na Pampa, e
Córdoba, que eram os grandes centros de produção de mel, viram as suas
produções cair. O mel acabou porque as abelhas foram todas envenenadas ao
alimentar-se do pólen transgénico. Portanto, estas lutas têm uma tripla
dimensão. Têm a dimensão colonial que se mantém - o colonialismo continua sob
outras formas -, têm a dimensão capitalista do uso da terra, e têm agora a
dimensão ecológica que são os limites ecológicos do capitalismo no séc. XXI. A
natureza está a falar, está a dizer "assim não pode continuar", é o
aquecimento global, é o degelo. Agora, as forças que não querem parar são as
que dominam o mundo neste momento. Portanto, os movimentos têm de continuar a
sua luta, mas essencialmente trata-se do esforço de convencer as classes médias
europeias de que o que está em causa é uma mudança civilizacional que vai
obrigar a mudar os nossos hábitos de consumo. E esta tem sido a nossa
dificuldade.
Susana Caló - Já o
ouvi dizer que a teoria não deve ser uma teoria de vanguarda, mas de retaguarda,
no sentido em que deve cuidar de facilitar, acompanhar e aprender com as
transformações sociais. E isso parece essencial, pensar a teoria e o
conhecimento como uma prática que abre espaços à multiplicidade e à
diversidade, na medida em que mantém essa ligação ao social. Pensando ainda
nessa tradução para a Europa, há aí um lugar importante das universidades,
visto que são um espaço tão privilegiado entre nós?
Boaventura de Sousa Santos - Sem dúvida, a universidade é um espaço tão privilegiado
quanto problemático. Um espaço que existe assente na ideia fundamental de
privilegiar um certo tipo de conhecimento, o conhecimento que triunfou a partir
do séc. XVII, o conhecimento científico e a tradição filosófica eurocêntrica.
Até que no século XIX “descobrimos” que a filosofia ocidental era toda grega,
destruindo assim todas as ligações que havia a África e ao Médio Oriente.
Fizemos uma ruptura a partir da Grécia, eliminando ou deixando na sombra o
desenvolvimento filosófico e toda a criação cultural de uma região do mundo
bastante mais vasta.
A
universidade foi a grande consagração do conhecimento vencedor e, portanto, do
conhecimento dos vencedores, aqueles que têm mais avanço na ciência e na
filosofia. Para já não falar nas ciências e filosofias orientais, há muitas
outras formas de conhecimento em circulação na sociedade, conhecimentos leigos,
populares muitas vezes vinculados às lutas sociais. O conhecimento popular,
resgatado pelas ecologias de saberes é um conhecimento que, muitas vezes, está
inserido numa prática que nasce na luta, é um conhecimento born in struggle, e só existe nos contextos práticos em que ele
existe e não nas instituições de produção de conhecimento. Portanto, a
universidade tem essa especificidade de ter separado a prática e o conhecimento,
e de ter transformado o conhecimento numa prática em si mesmo. Contudo,
separou-o de todas as práticas e é por isso que a universidade nos permitiu
também - é o outro lado - criar ideias revolucionárias num contexto reaccionário,
porque isolou os académicos do resto do mundo, na tal torre de marfim. Ora, o
meu projecto tem sido o de tentar mostrar quais são as virtudes da própria
universidade para criticar a ideia de que há apenas um tipo de conhecimento. Há
diversos tipos de conhecimento e se calhar devíamos ter parceiros dentro da
universidade vindos dos cidadãos, dos movimentos e organizações sociais,
portadores de outras formas de conhecimento que deviam ser reconhecidas. Há
experiências, hoje, por todo o mundo, onde isso está a ser feito. O caso do
Brasil, por exemplo, onde algumas Faculdades de Medicina, sobretudo nas
universidades da Amazónia, já incluem as medicinas e os médicos tradicionais,
os quais complementam a biomedicina moderna. Portanto, é esta ecologia de
saberes médicos, arquitectónicos, urbanísticos, ou jurídicos, que estamos a
estudar no projecto ALICE, e que no meu entender podem trazer alguma esperança
até às próprias universidades, porque muito do conhecimento que hoje se produz
toma lugar em outras instâncias que não as universidades convencionais. E daí a
proposta que tenho vindo a avançar no Fórum Social Mundial, de uma Universidade
Popular dos Movimentos Sociais, que prevê justamente uma outra maneira de
juntar cientistas e artistas com os movimentos sociais.
Susana Caló - Tem-se
referido a este momento em que as pessoas vêm para as ruas e para as praças
como um período pós-institucional, em que as instituições já não conseguem
acomodar os ecos das novas gerações, o que de algum modo faz com que novas e
diversas formas de actuação estejam a tomar lugar no espaço urbano e a abrir novos
espaços políticos. Acha que estes movimentos que vêm de baixo abrem a
possibilidade de uma nova ideia de espaço público? E como se pode fazer a
articulação destes movimentos com as instituições?
Boaventura de Sousa Santos - Eu acho que há aí duas questões. Uma delas é vermos a
contradição que se foi gerando, sobretudo nas últimas décadas, em termos das
relações sócio-espaciais, e o que eu chamo de espaço autoritário e espaço
democrático.
As concepções
espaciais autoritárias desenvolveram-se em grande parte no momento em que a
polarização social e a desigualdade social começaram a pôr em perigo a
governabilidade. Os espaços autoritários são os espaços dominantes que
procuraram defender-se de uma reacção popular, os condomínios fechados são exactamente
um bom exemplo entre muitos outros. Outros exemplos na organização espacial da
cidade são o negligenciar os espaços públicos ou organizá-los de maneira a que
se dificulte a aglomeração de pessoas, ou o afastamento das universidades dos
centros das cidades com a criação dos campus
universitários.
Isso na
América Latina é absolutamente claro, foram criados espaços para que o
movimento estudantil não pudesse ter um carácter perturbador do poder político
e acantonaram-se estudantes em espaços mais ou menos segregados. Portanto, a
lógica da gestão de espaço dominante foi a de criar um espaço que, mesmo sendo
público, fosse autoritariamente construído, quer dizer é um público restritivo
e selectivo. Ele próprio torna difícil qualquer articulação do movimento
social.
James Holston da Universidade de
Berkeley e que ainda há pouco tempo esteve no CES, escreveu um livro
fundamental sobre Brasília em que de algum modo critica toda a lógica
modernista de Brasília, uma cidade onde eu vou muitas vezes, mas com que não me
consigo identificar, porque precisamente é uma cidade onde é muito difícil o
espaço público e a mobilização social contestatária organizada, apesar de ter
sido construída por arquitectos comunistas. A vastidão dos espaços físicos
entre as partes edificadas, longe de favorecer a criação de espaços públicos,
cria desertos de cidadania, zonas social e politicamente neutralizadoras.
Portanto,
o espaço autoritário esteve sempre lá, e depois há o espaço dos excluídos,
digamos assim, que é a resposta ao autoritário e que são as favelas, os
subúrbios - não os subúrbios americanos, mas os latino-americanos - os guetos,
e que foram uma resposta não confrontacional, mas de adaptação. Entretanto,
começaram a surgir as lutas pelo espaço público. Estas lutas vão ter muitas
dimensões até ao tempo presente em que desaguam nos movimentos que estamos a
ter hoje. O espaço público foi utilizado para fazer reivindicações em que o
público em si mesmo não era uma reivindicação: era o novo código do trabalho,
os direitos das mulheres, e por aí fora. O espaço público era então usado para
servir as reivindicações.
Susana Caló - Como um
palco.
Boaventura de Sousa Santos - Exactamente, como palco. Ora, não é assim hoje. O
espaço público do movimento dos Indignados
hoje é o espaço em si mesmo, é o espaço que é o valor, é a questão da arena
política. A luta política tem lugar nesse espaço porque os Indignados crêem que
os espaços institucionais foram colonizados pelo neoliberalismo, neutralizando
o direito à manifestação política dentro das instituições. É daí que vem o meu
conceito de pós-institucionalidade. O espaço público aqui surge como uma
situação de transição espacial paradigmática, de um espaço que é palco ou é
veículo, para um espaço que é entidade em si mesmo. É presença. Por isso é que
eu digo que por vezes não devemos falar de movimentos, mas de presenças colectivas
na cidade e nos espaços públicos, é um tipo distinto de reivindicação do
espaço.
Agora, a
sua segunda pergunta é de saber se este momento é o momento, em termos dialécticos,
de um entendimento diferente com as instituições, e com os espaços
institucionais. Aí, tudo vai depender da força da democracia que nós temos,
porque se a democracia tiver ainda o mínimo de vitalidade, a democracia será o
governo do povo para o povo e pelo povo. Ora, se o povo vai para o espaço não
institucional, está a dizer às instituições que são não democráticas e que não
estão a cumprir a sua função, porque se elas não fossem desviadas das suas
funções não era preciso isto.
Antes,
havia os parlamentos, e a mobilização popular na rua era para os parlamentos actuarem.
Mas nós estamos numa fase em que actuamos na rua para produzir resultados
políticos na rua, porque sabemos que os parlamentos não respondem, eles estão
cooptados, estão tomados pela troika
e por outros valores e interesses que não os interesses populares. Mas, se a
democracia tiver essa semente de vitalidade ainda, eu penso que haverá reformas
políticas que irão responder a esta situação, a que as instituições na sua
configuração actual não conseguem responder. Vamos desenvolver formas de
democracia participativa, vamos permitir que a democracia não seja apenas
eleger gente para o parlamento, e vamos ter também cidadãos organizados nos
municípios, que participam nas decisões. Isto também poderia ser facilitado por
vias que temos hoje, como as redes sociais e os meios electrónicos disponíveis
que permitem formas de democracia electrónica. É toda uma questão nova que está
aí, de um espaço público virtual e que é um espaço com um potencial enorme.
Mas isso
vai depender de a democracia ter capacidade de dar resposta. Os povos foram
expulsos das instituições, por isso é que se estão a manifestar na rua. Não é
que eles não queiram as instituições, veja que a luta dos Indignados é uma luta
por uma democracia real. Portanto, não é alguém que recusa a democracia, é
alguém que sente que foi expulso de uma democracia, que esta já não serve os
seus interesses. Está a reivindicar-se uma entrada, só que essa entrada implica
uma reforma fundamental das instituições. E essa é a transição em que estamos
neste momento e que torna toda a luta política muito incerta.
Susana Caló - Em Portugal. Ensaio contra a Autoflagelação,
escreve sobre necessidade de democratizar a democracia. Acha premente a
democratização do espaço como veículo para a democratização da democracia? É revelador
como nos movimentos de ocupação de espaços ou re-utilização para fins
comunitários as pessoas falarem de um fazer da comunidade e de uma sensação renovada
de colectivo.
Boaventura de Sousa Santos - Absolutamente, eu acho que é o essencial. Há que
democratizar o espaço, porque ele tem sido privatizado de várias formas, não
apenas pelos projectos imobiliários, mas também através de uma resposta
meramente repressiva à criminalidade. O espaço público tem de ser reconstruído
com um sentido de colectividade. É o espaço da convivência, é o espaço da
emoção, é o espaço da confiança, é o espaço do olhar e é o espaço do abraçar.
São tudo espaços que têm de ser construídos e, portanto, esse espaço é uma
grande conquista neste momento. Porque o que fizemos com o modelo neo-liberal
foi ir para o espaço privado e sair do espaço público, e hoje vemos que quando
abandonamos o espaço público as crises financeiras e as crises ecológicas
entram-nos dentro de casa. Isto é, não ganhamos muito refugiando-nos no espaço
privado, porque agora estamos sem emprego, ou então estamos a comer produtos
envenenados. E, por isso, temos que voltar ao espaço público. Mas é preciso
reconquistá-lo. Portanto, democratizar a democracia para mim tem um sentido
muito amplo. Todas as relações sociais são espácio-sociais, mas são-no de
diferentes formas. Em A Crítica da Razão
Indolente eu distingo seis modos de produção do poder e do conhecimento e
do direito: são o espaço doméstico, o espaço da produção, o espaço da
cidadania, o espaço da comunidade, o espaço do consumo e o espaço mundial. São
todos estes geo-espaços que devem ser democratizados. Ora, o que acontece é que
no modelo ocidental que temos, só o espaço da cidadania foi relativamente
democratizado. A nossa democracia trabalha apenas ao nível do espaço público da
cidadania, não está na família, não está na fábrica, não está no consumo, não
está na comunidade, nem nas relações mundiais. A democracia representativa que
nós temos, no fundo, é uma ilha de democracia hoje muito fragilizada, num
arquipélago de despotismos, na família, na fábrica, na rua, na comunidade e no
consumo. Portanto, democratizar a democracia é democratizar esses espaços e
todos eles no meu entender têm uma dimensão de espaço público. Isto é, a
família hoje não pode ser entendida como um espaço privado, até porque ela está
regulada também publicamente.
Nós
criamos a ideia de que a propriedade privada não se toca. Mas isto obriga
também a repensar todos os outros conceitos de propriedade imobiliária e
inclusivamente a propriedade da terra. O que é importante para uma cidade ter
como espaço público? Quais são os critérios de valorização? Porque é que os
planos directores são sucessivamente violados? E porque é que sempre que se
precisa se vão buscar a esse potencial espaço público outras valorizações,
sobretudo agora na crise financeira? A questão do espaço mede-se exactamente
com a questão do tempo. O espaço público é o espaço dos tempos longos, da
convivência, da confiança, que não se cria de hoje para amanhã. Cria-se depois
de amanhã, daqui a um ano, dois anos. Porque há espaços que muitas vezes são
criados e se diz que depois as pessoas não os usam. Pois não, porque tem de se
passar algum tempo para que as pessoas se habituem e fruam outras concepções de
espaço. É um tempo longo, e os nossos políticos se antes estavam a governar a
quatro anos, agora governam a dois, e com a troika
governam a meses, que é um tempo muito curto, e que joga totalmente contra
qualquer ideia de espaço público.
Susana Caló - Como
tem acompanhado eventos recentes em Portugal de retoma e ocupação de espaços
abandonados para potencial uso pela população, por exemplo, o caso do movimento es.col.a no Porto, e a vontade
crescente de uma autogestão colectiva de certos espaços da cidade?
Boaventura de Sousa Santos – É um movimento que tem óbvias razões sociológicas e
políticas no contexto em que vivemos, e que tem acontecido noutros contextos,
só que cada contexto determina qual o perfil de um movimento. Por exemplo,
depois do 25 de Abril, no período revolucionário, houve muitos movimentos de
ocupação, porque havia uma grande deficiência de habitação no país – e estou a
falar só do movimento urbano, porque também houve ocupação de terras no
Alentejo e a criação das cooperativas agrícolas –, mas na cidade havia muitos
espaços devolutos, havia prédios construídos e que não tinham sido ainda
ocupados, e havia muita gente sem habitação digna. Por outro lado, houve grande
pressão habitacional com as transformações políticas, com a vinda dos
retornados, enfim, 500 mil pessoas no prazo de um ano a entrar num país de 10
milhões de habitantes, obviamente um fenómeno populacional significativo. E daí
decorre toda uma transformação política que ocorre no país e que permite
energias de ocupação, ou seja, de violação das normas jurídicas, porque o que a
ocupação tem de característico é o violar uma regra fundamental que é o
respeito pela propriedade privada. A propriedade privada é a âncora de todo o
direito moderno e de toda a democracia burguesa. No momento revolucionário de
1974-1975 - ou de crise revolucionária, nunca lhe chamei propriamente uma
revolução, mas uma crise revolucionária, de empate de poder, em que nem houve
poder popular, nem houve poder burguês - nós criámos uma brecha que permitiu,
de uma forma massiva e organizada, ocupações. Isso, portanto, é um contexto.
O outro
contexto dos últimos 40 anos é um contexto que não é de modo nenhum
revolucionário, mas se calhar é contra-revolucionário. É o contexto que ocorre
dentro da democracia que entretanto foi institucionalizada pelo 25 de Abril, em
que se deram expectativas enormes de bem-estar à população portuguesa, se
reclamaram e reconheceram direitos políticos e sociais e que, muito repentinamente,
e por razões que a população não entende, tais expectativas estão a ser
frustradas e os direitos confiscados. Ora, num contexto contra-revolucionário,
frustram-se as expectativas, as instituições democráticas não estão a
responder, as câmaras não têm dinheiro, os governos estão a fechar escolas,
etc., e, portanto, esse movimento de ocupação é mais uma dimensão daquilo a que
eu chamo o movimento pós-institucional, que neste caso é a violação ou da
propriedade privada ou da propriedade pública. A propriedade privada é do dono,
a propriedade pública é sujeita às regras do Estado, portanto, quem não cumpre
as regras não pode ocupar, são essas as duas dimensões da propriedade. Porque a
propriedade pública entre nós é a propriedade estatal, sobretudo em termos de
espaços edificados, não há um espaço público edificado não-estatal. Podia ser
um espaço comunitário, mas não é - a escola é, por exemplo, do Ministério da
Educação. E, portanto, estamos a assistir a um momento pós-institucional que se
traduz também nessa ocupação de espaços, e a lógica é a mesma: é uma resposta
política a uma situação de frustração de expectativas que foram construídas nos
últimos 40 anos. E obviamente não acreditando nas instituições, nem nos
direitos que as sustentam, viola-se o direito da propriedade privada e viola-se
o direito da propriedade pública. Não são movimentos da mesma dimensão, são
movimentos mais pequenos, são organizações mais pequenas, são por vezes o que a
gente hoje chama de movimento espontâneo – e obviamente que não há movimento
propriamente espontâneo, tem de haver uma agregação, nem que seja através de
uma rede social – mas é evidente que há aqui um outro tipo de mobilização cuja
conotação política é muito difícil de identificar, ou que até são totalmente
hostis à política, o que não era o caso em 1974 e 1975.
Susana Caló - Os
movimentos sociais dos quais falamos na América Latina que desenvolveram uma
presença muito forte durante os anos 90 forçaram uma reconfiguração do espectro
político da América do Sul dominado por governos de esquerda. A mesma presença
e articulação não se verificam em Portugal e Espanha. Quais pensa serem as
razões de uma menor capacidade de agenciamento social na Europa e, em
particular, em Portugal?
Boaventura de Sousa Santos – Comparando as duas situações, nós podemos alinhar
algumas hipóteses de trabalho para explicar essas diferenças. Eu penso que uma
delas é que os movimentos na América Latina surgem no contexto de uma abertura
democrática que se dá depois das ditaduras militares, dentro de uma tradição
que é uma tradição oligárquica e de muita desigualdade social. O Brasil era até
há pouco tempo o país mais desigual do mundo. E esta desigualdade social fez
com que à partida qualquer luta social tivesse que ser muito organizada, tivesse
que ser muito forte, porque a desigualdade social era tão grande que as classes
oligárquicas iam-se defender por todos os meios – tinham-se defendido pela
ditadura e iam-se defender pela democracia. Portanto, à partida nós não temos
um conteúdo social democrático nas democracias. A democracia que surge na
América Latina nos últimos trinta anos surge junto com o neo-liberalismo. É a
democracia mais a abertura aos mercados. As democracias que se construíram em
Portugal e Espanha entram numa matriz europeia, social-democrática de inclusão
e a revolução vai - sem que se tenha muito esforço, pois é operada por uma
minoria militar - conceder muitos dos direitos pelos quais os Latino-Americanos
lutavam há muito. Portugal também não os tinha, teve quarenta e oito anos em
ditadura, a Espanha a mesma coisa. Quando surge a democracia é uma democracia
que tem um conceito de democracia social, foi o Estado-providência, o Serviço
Nacional de Saúde, a educação pública, a universidade pública e o acesso à
universidade. Portanto, ocorreu aqui, num curto espaço de tempo, o que na
Europa levara décadas a construir. Não foi preciso organizar movimentos nestas
áreas porque de alguma maneira o Estado estava a corresponder. Isto também
explica que, mesmo na Europa, depois dos anos de 1970, os grandes movimentos
tenham sido os movimentos feministas e os movimentos ecologistas. Obviamente,
depois dos movimentos operários onde esse crescimento foi orgânico, não uma
revolução, organizando-se desde o princípio do século XX e com duas guerras
pelo meio e depois dos movimentos estudantis.
O que
agora acontece é que os países, quer a Espanha, quer Portugal, quer a Grécia,
estão num estado de choque. Esse modelo democrático colapsou, ainda por cima,
não por decisão dos países, mas por decisão externa. E, portanto, as energias
organizativas, a consciência colectiva, a cultura de contestação e de
mobilização não se constroem de um dia para o outro. Naqueles países que têm
mais tradição reivindicativa, como a Espanha e a Grécia, isso é mais fácil. Em
países que têm menos, isso é mais difícil. Eu acho que a razão fundamental
reside nas diferentes culturas ou modelos democráticos que se criaram nestes
quarenta anos, e que são muito diferentes da América Latina. Mas como vai ver,
se for ao Brasil, também lá se diz que “há uma crise dos movimentos sociais” e,
em parte, a crise dos movimentos sociais decorre das políticas de
social-democracia à brasileira que o Lula introduziu: começou a permitir que os
brasileiros tivessem todos 3 refeições por dia, que era o grande slogan do Lula, “eu quero que os
brasileiros comam 3 vezes por dia”, essa era a utopia, hoje é uma realidade,
porque muita gente saiu da pobreza no Brasil. Foram outras lógicas. E eu penso
que haverá outras hipóteses de trabalho, porque se pode ir mais pelas culturas
políticas que se criaram ao longo do tempo. A desarticulação da Europa em
relação ao que se passa noutros continentes levanta a questão da aprendizagem
com a experiência do mundo que referi anteriormente, uma grande transição também
de concepções de democracia. Só agora é que estamos a ver que, afinal, em plena
crise, aumentam os super-ricos em Portugal. Isto era uma coisa que não existia,
sempre nos orgulhávamos que os países Europeus tinham menos desigualdade social
que em outros continentes, e se calhar em poucos anos estaremos no mesmo nível.
Susana Caló -
Recentemente foi criado o Observatório
sobre Crises e Alternativas e editado o Dicionário
das Crises e das Alternativas, de que forma é que esta crise pode ajudar a
abrir espaços para pensar diferentemente?
Boaventura de Sousa Santos – Eu acho que abre na medida em que fundamentalmente o
problema actual é que as receitas que estão a ser dadas para a crise aqui na
Europa foram as receitas que a Europa sempre deu para o mundo inteiro, no
sentido de que o mundo deveria aprender essas receitas porque eram as receitas
justas para que todos um dia fossem desenvolvidos. Mas, no momento em que a
crise cai em casa, vê-se que essas receitas – que nós sempre denunciámos que
não eram receitas, que não poderiam resolver o problema – quando a crise cai em
casa, revelam que a Europa está armadilhada na sua própria ideologia e não tem
nenhuma solução para o problema. Portanto, agora é possível trazer muito do
pensamento crítico que nós construímos nos últimos trinta anos, mostrando que
este modelo era um modelo falido, do ponto de vista civilizacional, de um ponto
de vista de desigualdade social, e de um ponto de vista de discriminação
social. Pois estamos a ver na Europa – que é quem ditou as soluções para o
resto do mundo – que elas não funcionam aqui. Ora, se não funcionam aqui, como
é que podemos imaginar que funcionavam no Brasil ou na Tailândia ou na
Tanzânia? Não funcionaram. Portanto, está a abrir-se um outro espaço, e que se
nota no discurso. Alguma vez imaginava que um Comissário Europeu da Justiça
usasse a palavra “banksters”? A palavra “banksters” é uma palavra que vem dos
movimentos dos indignados radicais dos Estados Unidos para quem os banqueiros
são gangsters, daí o neologismo “banksters”.
Pois bem, a Comissária da Justiça, ao analisar as manipulações que recentemente
fizeram da taxa Libor, afirmou que os bancos se comportam como “banksters”.
Isto é um forte sinal dos tempos.
Susana Caló – É
interessante, é uma brecha.
Boaventura de Sousa Santos – Abre-se aqui uma brecha qualquer. Começamos nos anos
2000 no Fórum Social Mundial por propor uma taxa sobre as transacções
financeiras. Quem é que propunha? Era um grupo francês que depois teve muitas
filiais em todo o mundo que é o Attac.
O movimento Attac foi um movimento
muito notável que era basicamente isso – um movimento para a tributação do
capital financeiro sobretudo das transacções internacionais de moeda. Uma
pequena taxa. Ora, ela acabou por ser defendida por Sarkozy, e é defendida hoje
por Durão Barroso. Quer dizer, eles estão com tanta falta de soluções que vão
buscar algumas que os movimentos sociais defendem há muito tempo. Eu escrevi no
Portugal Ensaio Contra a Autoflagelação que a curto prazo não há outra
solução senão o eurobonds. Bem, na
altura era uma coisa de esquerda radical. Mas, hoje vê-se o François Hollande e
o ministro das finanças da Alemanha a dizer que se calhar temos de ir para os eurobonds. Ora, isto mostra sobretudo a
tragédia de não terem uma estratégia de solução contra o caos em que estamos a
entrar. E, portanto, isto abre uma brecha para quem, como eu, pensa que a
teoria crítica eurocêntrica, a teoria social e filosófica, nos treinou muito
bem para a denúncia crítica, mas não tão bem para formular propostas de
alternativa.
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Imagem: Parque
Indoamericano, Buenos Aires, Argentina. Fotografias de Sub.Coop, 19 de Dezembro
de 2012. Cortesia Sub.Coop
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Susana Caló Escreve
neste momento o doutoramento no Centre for Research in Modern European
Philosophy (CRMEP), em Londres, com uma tese sobre a política da linguagem a
partir de Gilles Deleuze e de Félix Guattari em que aborda as relações entre
linguagem, semiótica e emancipação. Integra o grupo de investigação Arte e
Estudos Críticos do Centro de Estudos Arnaldo Araújo, no Porto