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São Pedro da Afurada ou o “espírito de
um lugar” condenado a desaparecer
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Maria de Magalhães Ramalho
Somos uma comunidade pequena mas
temos uma identidade arrasadoramente grande e única e isso, nada nem ninguém
nos pode tirar.
Página
eletrónica da Junta de Freguesia da Afurada.
Por melhores intenções que
existam e acredito que alguém ainda as tenha, eu não, o que se passa com o
“Projecto de Requalificação da Afurada” (1) só me faz lembrar a perversidade do
processo dito de requalificação dos funcionários públicos. Como sempre há quem,
através de um conhecido processo de desinformação e douramento da pílula,
continue a propagandear, como forma de esconder as verdadeiras intenções, que a
Afurada é um laboratório interessante em
contra ciclo, ou que o Plano de Pormenor da Afurada contribuiu para a
reestruturação de modelos sociais e comunitários de convivência com vantagens
para as pessoas (2).
Fig. 1. Barca América naufragada na Afurada, grande
cheia de 1909 – postal ilustrado. In Blogue “O Piloto Prático do Porto e Leixões”.
Como é sabido, todo este
empolgamento e boas intenções nasceu da vontade real de implantar neste
território uma Marina e duas mega-urbanizações (3). Pasme-se pois como é
possível que, sem quaisquer estudos sérios, já se tenha concluído sobre os
resultados positivos de um processo que ainda nem terminou! De um momento para
o outro e de uma forma brutal, eis que se ergue, lá para os lados da barra do
Douro, mais um hino à “Marca Porto” (4) como gostam de chamar os políticos da
terra, uma marca destinada certamente ao sucesso, um prolongamento do efeito
feira popular que se tem instalado na frente ribeirinha de Gaia, agora até com
teleférico à falta de comboio fantasma ou montanha russa.
Fig. 2. Projecto de Barbosa
& Guimarães para a Quinta de Marques Gomes (Imagens 3d, Barbosa & Guimarães)
Do lado de lá na Ribeira,
observa-se o mesmo fenómeno, ganha terreno uma forma selvagem de ocupar
espaços, num salve-se quem puder em forma de esplanadas de plástico,
divisórias, toldos, publicidade de todos os tipos, à mistura com cantores,
vendedores, carros, etc., um vale tudo desde que sirva ao negócio do turista
que cada vez mais pulula pelo Porto histórico em regime low cost. Não me admirava, por já ter
observado esta situação em outros locais, que aos poucos as pessoas se
deixem enganar ou pior, alimentem falsas expectativas ou desajustadas crenças
até ao momento em que finalmente o pesadelo fique às claras.
Em conversa com alguns
residentes da Afurada compreendi que em geral se considera, com uma espécie de
ingenuidade sobre o poder destas operações e alguma malícia, que este tipo de
projectos traz gente e bons negócios, aumentando assim a importância e a
visibilidade da comunidade. Para os antigos pescadores, reunidos em frente ao
rio, existe a ideia de que a Marina e o seu Porto não se misturam, são duas
realidades que se vão manter separadas, duas vivências distintas sem razões
para preocupações no que diz respeito à perda de identidade…Para qualquer leigo
nestes assuntos, basta ter olhos e sensibilidade o quanto baste para ver que a construção da Douro Marina “a maior infra-estrutura para a náutica de
recreio existente entre Cascais e a Galiza”! (5) criou um absurdo urbano na
Afurada, colocando em sério risco a existência e o carácter ímpar deste lugar.
Fig. 3. Palacete de São Paio
da Afurada e a Marina Douro. Maria Ramalho
Quem conhece o local, uma comunidade
com fortes bases na actividade piscatória e uma população estável, habituou-se
a sentir que se tratava ainda de um “lugar feliz” onde, apesar de todas as
dificuldades do dia-a-dia e de se tratar, segundo alguns, de uma zona
empobrecida (mas o que é afinal a riqueza?), sente-se vizinhança, elos
familiares fortes, a importância das relações estreitas como resultado da
partilha de uma actividade dura e de longa tradição. Longe de pretender preservar
nostalgicamente o retrato dado num documentário dos anos 70 em que “as mulheres
lavavam a roupa e os homens tratavam das artes da pesca” (6), trata-se de achar
que era uma obrigação dos políticos, urbanistas (será que os houve) e outros
tantos ditos pensadores destas coisas, respeitar o ritmo próprio dos sítios e as
suas vivências, não pretender, num discurso falso e fascizante, trazer o “bem-estar
e auto-estima” (7) às pobres populações ribeirinhas tão necessitadas do tal “progresso”,
transformando, com as sempre perversas e ocultas intenções do lucro fácil, o
sítio da Afurada em mais um spot interessante na rede das Sete Maravilhas
(8) da “Marca Porto”, uma daquelas que todos os turistas têm mesmo que
conhecer.
Olhando as imagens a preto e
branco, tão longínquas agora, sobre o que era a dura vivência tanto no rio,
como em terra, dos habitantes de São Pedro da Afurada, onde marcavam presença
homens, mulheres e muitas crianças, com as suas bateiras, redes e peixes, vemos
com tristeza como foram agora todos encerrados pateticamente no “Centro
Interpretativo do Património da Afurada” inaugurado em 2013, num discurso
museológico sem sentido sobre uma comunidade que, afinal, ainda está viva.
Fig. 4. Armazéns de
pescadores na Afurada. Maria Ramalho
Ao longe, ainda neste filme, avistavam-se já as torres do
Bairro do Aleixo a nascer, outra realidade condenada actualmente ao mercado do
imobiliário, bem como a referência ao importante papel do Mercado do Bom
Sucesso onde o pescado era vendido pelas mulheres da Afurada, espaço hoje trasvestido
“num novo conceito comercial de cara lavada” - isso é importante, novinho e
lavadinho como convém! O Mercado é agora certamente mais moderno e eficiente e
os atractivos espaços comerciais ostentam, enfim, refinados produtos tipo
gourmet ….
Associado ao projecto da
Marina, e como não podia deixar de ser pois é essa sempre a contrapartida neste
tipo de negócio, nascerão duas belíssimas urbanizações - Quinta de Marques
Gomes e antiga Seca do Bacalhau na freguesia de Canidelo, num total de 30 hectares,
transformando-se ainda o palacete da quinta num belo hotel de charme. Claro,
não podia faltar o Hotel de Charme! E fica assim arrumada de vez a Afurada,
cercada agora por terra e por água, enclausurada entre pontões de acostagem de
barcos finos e muralhas de casas de luxo, para além de uma correnteza de bares
do melhor franchising internacional!
A roupa a secar e os pescadores
passam agora a ser interessantes imagens a explorar, num discurso de mercado,
produtos do melhor folclore para os yachtsmen endinheirados da Foz ou de
outras mais longínquas paragens. Faltará pouco para que as lides da pesca,
atrofiadas por anos de “Política Comum das Pescas”, sejam finalmente reduzidas
a representações cenográficas, pano de fundo aos bares e restaurantes dispostos
ao longo do rio. Veremos, não tarda também, barquinhos e estendais em miniatura
a serem produzidos em série na China para vender cá aos turistas frequentadores
dessas vistosas esplanadas da moda.
Fig.
5. Centro Interpretativo do Património da Afurada. Maria Ramalho
Por tudo isto é mais que certo
que a comunidade da Afurada inicie agora um longo processo de desagregação de
identidade, talvez um dos mais gritantes casos no nosso país (a merecer um
empenhado estudo sociológico). Assistiremos, os que souberem interpretar os
sinais, ao processo todo, desde o início desta hipócrita “acção de valorização
do seu património e memória”, que mereceu até o tal “Centro Interpretativo do
Património da Afurada”, até à sua morte antecipada e por isso a necessidade de um
enterro em pompa e circunstância. Que entre mortos e feridos ao menos fique um
local para preservar esta “identidade arrasadoramente grande e única” !
Diga-se, a este propósito, que o Centro Interpretativo em si, não olhando ao
seu perverso significado, tem méritos como projecto de arquitectura tanto pela
escala como pelo do modo de fazer (9), exactamente o oposto do projecto Marina
Douro que veio nitidamente para “arrasar”!
Fig.
6. Olhando as memórias no Centro Interpretativo do Património da Afurada. Maria
Ramalho
Entre a rede dourada da Joana
Vasconcelos no andor de São Pedro em 2012, outra propaganda abrilhantada por
arte(s) políticas bem montadas, e a dureza do trabalho da pesca na vida real,
teria havido certamente espaço para outras formas de intervir que não
resultassem neste triste espectáculo que se vai, a cada dia que passa,
instalando neste local tão especial. Cremos que ainda é possível acreditar numa
outra via de respeito sincero pelas pessoas e pelas suas vidas, mas talvez já
não na Afurada…
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Maria de Magalhães Ramalho, Arqueóloga, ICOMOS.
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Referências
1. A Câmara de Gaia espera que sejam investidos, este
ano, cerca de 50 milhões de euros. Dinheiro público e privado
que deverá servir para alterar a imagem actual de toda a frente marítima e que
contemplará, além da habitação de luxo, empreendimentos dedicados à cultura e
ao lazer. In Diário de
Notícias, 3 de Janeiro de 2011.
2. Filipe Menezes, discurso na cerimónia de entrega das
medalhas de mérito profissional (grau ouro) aos arquitectos Alexandre Alves
Costa e Sérgio Fernandez pelo projecto do Centro Interpretativo do Património
da Afurada. In página electrónica da Câmara Municipal de Gaia.
3. O projecto Marina Douro foi finalmente inaugurado
em Fevereiro de 2012. Projecto dos arquitectos Barbosa & Guimarães.
4. Termo muito em uso pelos políticos dos dois lados do
rio.
5. Jornal de Notícias, 4 de Fevereiro de 2012.
6. Filme de Hélder Mendes “Pescadores da Afurada”.
7. Filipe Menezes, discurso na cerimónia de entrega das
medalhas de mérito profissional (grau ouro) aos arquitectos Alexandre Alves
Costa e Sérgio Fernandez pelo projecto do Centro Interpretativo do Património
da Afurada. In página electrónica da Câmara Municipal de Gaia.
8. A Comunidade Piscatória da Afurada, foi escolhida pelo
júri do concurso "As 7 Maravilhas de Gaia" organizado pelo jornal O
Gaiense.
9. Projecto do Atelier 15 - arquitectos Alexandre Alves
Costa e Sérgio Fernandez.
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Nota editorial
Entre 2001 e 2006 foram desenvolvidos um conjunto de
projectos e obras na Afurada ao abrigo do Programa Polis. Tendo por base o Plano
de Pormenor da Afurada elaborado pelo Atelier 15 (Alexandre Alves
Costa e Sérgio Fernandez, 2001-2005) foram projectados e construídos, entre
outros, o Lavadouro Público (Atelier 15, 2003), o Centro Interpretativo do
Património da Afurada (Atelier 15); a Beneficiação dos Espaços Públicos da
Afurada (Virgínio Moutinho, 2005); Arranjo Urbanístico da Marginal e o Porto de
Pesca (Carlos Prata, 2006). Os projectos actuais da Marina Douro (2012) e da
Urbanização e Hotel de Charme na Quinta Marques Gomes (projectos de Barbosa
& Guimarães) não estavam contemplados no Plano de Pormenor para a Afurada,
nem no Plano de Pormenor do Canidelo elaborado por Francisco Barata. A
urbanização na antiga Seca do Bacalhau é um projecto assinado pelo escritório
Risco. Relativamente ao Centro Interpretativo do Património da Afurada, o
projecto museológico elaborado por José Portugal e Pedro Quintela (Quaternaire
Portugal), não seguiu as orientações do projecto inicial proposto pelo Atelier
15.
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