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Os analfabetos
do presente
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Pedro
Levi Bismarck
“O analfabeto do futuro,
disse alguém, será aquele que não sabe ler as fotografias, e não o iletrado”.
Walter
Benjamin
O facto do «Passeio
dos Clérigos» (projecto dos arquitectos Balonas&Menano para a Praça de
Lisboa, no Porto) ter sido promovido
à passerelle da fotogenia nacional (o
site «últimas reportagens», do
fotógrafo/arquitecto Fernando Guerra) é não apenas constrangedor, mas
sintomático da actual condição da arquitectura: entregue, como está, ao registo
caleidoscópico das imagens e da ditadura do espectáculo. O site «últimas reportagens», essa lente olho de
peixe por onde desfila como num carnaval toda a arquitectura nacional, transformou-se
desde há muito num não-lugar, uma terra
devastada onde tudo cabe e onde tudo, mesmo o mais medíocre dos projectos, pode
aparecer. Aquilo que não pode ser esquecido de modo nenhum é que um site como este não é uma publicação de
arquitectura, onde texto e fotografia se cruzam para construir uma crítica de
obra. A única lei que aqui impera é a do negócio, a única que permite, aliás, como
num suplemento imobiliário, que lado a lado convivam uma obra de Álvaro Siza e
este «Passeio dos Clérigos». Nenhum
critério arquitectónico, nem estético, nem político. Na fórmula de Debord,
simplesmente, “o que é bom aparece, o que
aparece é bom”.
Mas porque é que sobre tudo isto paira um certo perigo? Porque
aquilo que aparece perante nós (apesar de todas as ilusões) já não é obra de arquitectura, mas simplesmente, imagem de arquitectura – a imagem como
entidade autónoma, desligada de qualquer contexto ou sentido, de qualquer
critério que não seja o seu próprio brilho.
Voltando ao exemplo do «Passeio dos
Clérigos». Ele é, enquanto obra arquitectónica, no seu processo de
construção, na sua linguagem, na sua relação com a cidade, lugar de uma prática
neoliberal de venda e concessão de espaço público, de um autoritarismo decisório
da Câmara Municipal do Porto, de um processo que não fez mais que desprezar a
arquitectura enquanto prática profissional e social. Mas enquanto imagem fotográfica, nos seus clichés pacientemente estudados e
calculados (que chegam, aliás, a anular a elevada pendente de uma das ruas
adjacentes), o «Passeio dos Clérigos» é
o lugar da cidade cosmopolita, global, turística, alegre movida de uma cidade triunfante e de sucesso. Nessa imagem fotográfica, todas as
contradições da obra são anuladas, todo o significado é suspenso, ela brilha
como entidade autónoma, não dá satisfações a ninguém, exibe-se triunfalmente
pelo mundo fora e, por fim, ri-se assustadoramente de nós. Porque ela, a imagem, já não fala de arquitectura, nem
da cidade, já nem fala de nós, homens, mas desse mundo onde já não temos lugar
e de onde estamos excluídos. Não são utopias,
nem janelas abertas do progresso a maravilhar o futuro da humanidade, são
simplesmente simulacros de um real inexistente que nos arrastam para um sono
profundo. Não somos nós que sonhamos, é o capital
que sonha por nós (os seus negócios, os seus números).
Estas imagens, que correm hoje pela volúpia quotidiana, são
como esse súbito instante em que sentimos o perfume de alguém que passou por
nós na rua, ainda levantamos esperançadamente o olhar mas já só vemos a
multidão informe. Poderá ser o perfume de um belo e cativante rosto, mas também
poderá ser, simplesmente, uma certa senhora de idade exageradamente maquilhada.
Não é possível compreender a crise do nosso tempo sem
criticar as formas de mediação que nos envolvem e o modo como nos deixamos
conduzir por elas em direcção à terra devastada sem ética nem poética do
espectáculo. Criticam-se as políticas neoliberais, lamenta-se o subsumir da
nossa vida ao paradigma do económico
e, entre nós, a ausência de reconhecimento do arquitecto na sociedade, mas
somos os primeiros a participar nessa mobilização geral que nos arrasta sem
sabermos. Participamos numa ironia generalizada. Perdemos muito tempo a
percorrer a passerelle diária das «últimas reportagens» e do «archdaily» e pouco tempo a ler jornais
ou a ler sobre arquitectura, sobre filosofia ou sociologia. Não se trata de
saber mais ou menos sobre esta ou aquela disciplina, mas tentar compreender um
pouco que seja deste tempo do qual
fazemos parte. Somos vítimas da nossa própria apatia perante um espectáculo que,
enquanto afirma o direito à nossa opinião, reduz a migalhas todo os espaços do
pensamento e da crítica; que afirma constantemente a liberdade e a democracia,
quando esta todos os dias nos foge pelos dedos das mãos e a pretexto de tantas
coisas. Trata-se de estar à altura do nosso tempo, isto é, procurar encontrar
ainda as respostas para esta época de crise. Mas estas não estarão certamente
no reduto fechado da prática nem do consumo individual das imagens, mas na
nossa capacidade de ter ainda algo a dizer sobre aquilo que fazemos, de falar
já não em nome próprio, mas arriscar falar com os outros.
É por isso que um outro autor, Walter Benjamin, alertava já
nos anos trinta para os perigos da estetização das imagens – operada, à época,
pela reportagem fotográfica da chamada «Nova
Objectividade», que, nas palavras do autor alemão, chegava a fazer da própria miséria um objecto de prazer. Uma
estetização cujo destino estava já traçado: o território propagandístico do
fascismo alemão. Também os futuristas italianos estetizaram a guerra, fizeram
dela imagem e perfume. E, ao encerrarem-se no seu maravilhamento, deixaram-se
cair num sono profundo que só terminou com os estrondos da Primeira Guerra
Mundial. O problema é sempre esse: aqueles que se deixam iludir pelo perfume da
imagem serão também aqueles que, como escreveu Benjamin, irão acabar por “viver a sua própria aniquilação como um
prazer estético”. E contra isso, contra esse sono, contra essa estetização generalizada da política (apanágio
do fascismo), só há uma resposta: a politização
da arte.
Só essa politização,
isto é, esse gesto de sacar das imagens a sua legibilidade, poderá permitir fugir do território estetizado do
espectáculo para onde somos arrastados diariamente e desvelar as relações de
força, as dinâmicas, que operam constantemente sobre a nossa vida quotidiana. Para
Walter Benjamin, citando alguém (Baudelaire?),
o analfabeto do futuro será não o
iletrado, mas aquele que não souber ler as fotografias. E perguntava logo de
seguida: “Mas não será praticamente um
analfabeto o fotógrafo que não sabe ler as suas próprias fotografias? Não se
tornará a legenda parte essencial da fotografia?”. Mas essa legenda, essa legibilidade, não significa simples ornamentação da imagem ou imposição
de significado, mas sim, questionamento, perturbação. Uma relação crítica onde as palavras desvelam as imagens e onde as
imagens dão às palavras esse seu brilho
de vida. Sem essa relação crítica,
como escreve Didi-Huberman, as imagens e as palavras são reduzidas a quase nada
que preste: estereótipos onde tudo pode caber. Só esse exercício crítico nos
poderá permitir ver nessas imagens brilhantes
do «Passeio dos Clérigos», não apenas
o seu perfume sensual (a sua forma, o
seu estilo, o cliché), mas o seu
verdadeiro rosto. Um rosto que, se queremos ainda salvar o nosso tempo, será
muito provavelmente aquele que teremos de aprender a reconhecer como o nosso mais
terrível inimigo.
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Créditos:
Balonas e Menano
Passeio dos Clérigos, Porto - Portugal
©
Fernando Guerra, FG+SG Architectural Photography
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