Bestiário do Imobiliário II \ Álvaro Domingues




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Bestiário do imobiliário 2
Álvaro Domingues

1.
Somos as cegonhas eléctricas recentemente convertidas em estrelas de greenwashing que é uma actividade que consiste em explicar as virtudes do capitalismo nos negócios da energia com a protecção da natureza, seja lá o que isso for. Quem nos dera que a natureza não incluísse a piolhada que nos habita as penas… Adiante.
No tempo em que as crianças não percebiam nada de sexo e reprodução, o nosso emprego era transportar bebés no bico. Com a quebra da natalidade, as normas de segurança no transporte de crianças e as incubadoras, ficámos sem emprego. O resto adivinha-se: desde que nos tornamos sedentárias metemo-nos a comprar uma casa que não há como pagar. Ficou para o banco. Que se lixe. Sempre que passamos em cima, cagamos nele.
Começámos então a fazer estas casas redondas com paus secos, tudo reutilizável, leve e de baixo consumo energético. Esteve cá um cegonho que tem a mania que é fiscal e diz que não se pode construir aqui porque é REN. Nós não nos entendemos com siglas. Ele disse que era uma Reserva Ecológica Nacional. Estamos fartas de ver patos bravos na Reserva Ecológica Nacional. Não somos menos que essa passarada. Além disso, REN é Rede Eléctrica Nacional (Nacional é uma palavra de sentido cegónhico); é o que diz num letreiro que está neste poste. O tipo está completamente passado desde que se viciou em electrochoques.



2.
Fazemos condomínios aéreos. Somos especialistas em arquitecturas complexas baseadas em estruturas entrançados: ninhos de pássaro (um tipo pirateou-nos isto para fazer um estádio olímpico na China! Imaginem). Passa-se então que viemos de uma família que faz casas na REN mas nós somos mais do asfalto e viemos para os pórticos das PPPs: dinheiro público para negócios privados e alegria na política partidária. As nossas antepassadas que migravam de Inverno para os paraísos fiscais também sabiam algo disso mas nós somos sedentárias porque a mudança climática e a roleta financeira asseguram-nos as quenturas.
Com as mudanças na lei das rendas exigiram-nos um disparate de dinheiro pela renda dos ninhos de pássaro nisto que eles chamam a concessão da “Costa de Prata”. É puro branding turístico bacoco. Não pagamos! Aliás, o senhorio nem sequer oferece condições mínimas de segurança e temos as crianças permanentemente expostas ao CO2.
Finalmente respiramos de alívio. Os humanos acabaram com as SCUT e agora todo o animal motorizado que passa aqui por baixo, é taxado. Os que não tem um bzidróglio electrónico para debitar a portagem na conta, só dão chatices, de modo que assinamos um acordo com a Ascendi para tomar nota das matrículas, como as Esposas de Viseu. Fazemos isto por turnos: cada carro, um pauzinho; um camião, dois. É simples, ficamos com as rendas pagas e percebemos finalmente isto das políticas ambientalistas.



3.
Nós somos as vacas sagradas. Vagueamos pelos montes magras e escanzeladas depois de termos sido despejadas do estábulo por um boi de um banco que tinha um negócio de resorts bovinos na serra da Peneda. O tipo, um cornudo de falas mansas, pregava mundos e fundos sobre a serra: a natureza, longe da cidade, do talho e lombo assado, longe das ordenhas mecânicas que nos sugavam leite até ao osso; casas de sonho, coisa barata que a gente pagaria com meia dúzia de bezerros (coitadinhos)… e  tretas assim. Nós contentes que nem um sino como o que aquela da esquerda trás ao pescoço!
Tudo conversa de boi. Depois de três anos nos tribunais a única coisa que o banco nos garante – quando calha - é palha desidratada, enrolada, à chuva e ao vento. Esta matéria escura aqui à frente, é bosta. É o que se tem quando aquilo que nos resta é assistir aos acontecimentos como se fôssemos apenas bovinos (agora que penso nisto, talvez não seja mau afiar os cornos para alguma emergência).



4.
Viemos todas parar aqui ao flashmob. É fantástico! Dantes só o tinhoso do cão é que nos guiava lá para os sítios que entendia como se fossemos uma carneirada. Agora temos estes dispositivos electrónicos nas orelhas e passa tudo por aqui desde os twitter aos sms. Aquela que está ali distraída a fazer que come os tijolos, até já apanhou partes da emissão do canal parlamento. Nunca mais foi a mesma, ficou confusa e só consegue interagir com as paredes. A tecnologia tem riscos. 
O flashmob é por causa da porcaria destas condições de habitação. Dizem que é tudo muito antigo e tradicional e que estas coisas que se pagam (devidamente actualizadas pela revisão da lei das rendas, claro). Nós achamos isto assucatado, cheio de esterco que a palha mal disfarça, e completamente exposto às intempéries. Além disso, é absolutamente primitivo pagar o alojamento com o nosso próprio leite e com as crianças que nos são retiradas meia dúzia de semanas depois de nascerem, sabe-se lá para onde e para quê.
Depois do protesto vamos para a Suíça. Chamam-nos a montanha, a neve, o chalet, os alpes, a liberdade, os lagos, o ar rarefeito, a lavagem de dinheiro, a Heidi … e tudo que um verdadeiro caprino pôde alguma vez desejar.   
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Imagens
Fotografias do autor.
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Álvaro Domingues
Melgaço, 1959. É geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
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Ficha técnica
Data de publicação: 5 de Maio de 2013
Etiqueta: Geografias \ cidades