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A cidade, entre o efeito Barcelona e o efeito Bilbau
O
exemplo do Porto
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Nuno Grande
Em Fevereiro de 2011, tive o privilégio de moderar um
interessante debate público entre dois grandes arquitectos ibéricos – Manuel
Gallego e Gonçalo Byrne –, organizado em torno da exposição Urbanidades que este último apresentava,
então, na Fundação Pedro Barrié de La Maza, na Corunha. A sessão, que contou
com uma participação activa do público, acabou por decorrer sob o espectro da primeira
questão que lancei: será que as nossas cidades estão destinadas a viver entre dois
extremos ideológicos do marketing urbano? Entre as políticas que vivem da fé no
projecto reabilitador do espaço público e as políticas que professam o papel
regenerador dos grandes ícones arquitectónicos? Ou seja: estaremos nós,
cidadãos ibéricos, condenados a viver entre o efeito Barcelona e o efeito
Bilbau?
Da acalorada conversa acabou por concluir-se que a controvérsia
não reside nas estratégias que presidiram à criação de ambos os modelos – na
verdade, a Barcelona Olímpica e a Bilbau do Museu Guggenheim beneficiaram directamente
dos seus originais efeitos regeneradores –; a questão está, antes, na perversão
gerada pela disseminação mimética, acrítica e maniqueísta desses modelos por diversas
culturas de forte tradição urbana, um pouco por toda a Europa, e em particular
na Península Ibérica.
Observando dois casos distintos e posteriores – também discutidos
no debate –, é possível verificar, por exemplo, que o desenho urbano do recinto
da Exposição Internacional de 1998 está, ainda hoje, longe de se integrar na Grande
Lisboa que lhe deu “berço”, tal como o isolamento e o gigantismo do complexo da
Cidade da Cultura da Galiza (iniciado há uma década) dificilmente se compreendem,
quando comparados com a riqueza e a delicadeza do tecido urbano de Santiago de
Compostela.
Nem a aposta, em Lisboa, num over-design
compósito do espaço público (em detrimento da amarração morfológica à
envolvente urbana); nem a aposta, em Santiago, na retórica de uma “arquitectura
topográfica” (aparentemente frustrada na sua coesão com a envolvente natural)
se revelaram suficientes para lançar verdadeiros programas regeneradores dessas
cidades. Tal como muitos outros, estes dois projectos correm o risco de se
tornarem em experiências “falidas” (nos mais diversos sentidos) da arquitectura
e do urbanismo contemporâneos.
Olhando os diversos processos, podemos concluir que o efeito Barcelona, tão em voga na gestão
urbana das grandes metrópoles latinas, ao longo dos anos 90 – de Madrid a
Buenos Aires, de Lisboa ao Rio de Janeiro – passou a competir, na última
década, com o efeito Bilbau, agora
disseminado através de novos ícones arquitectónicos, de natureza institucional
ou empresarial, e assinados por “arquitectos-estrela” que respondem ao desejo político
de (re)colocar as cidades médias da Ibéria - de Valência a Santiago, de
Saragoça ao Porto - no novo mapa da globalização financeira e/ou cultural. Acresce
que muitos desses projectos, gerados, como vimos, por grandes eventos
mediáticos, ou por simples caprichos políticos, constituem potentes “hardwares” urbanos onde parece faltar,
paradoxalmente, um “software”
institucional capaz de lhes conferir, para lá da efemeridade inaugural, uma
programação sustentável do ponto de vista social, cultural e económico.
Vem este preâmbulo a propósito de um exemplo que conheço de
perto, e sobre o qual me proponho reflectir: a recente regeneração urbana do
Porto, importante centro metropolitano do norte de Portugal, tomando, como
ponto de partida, o legado deixado pela gestão do evento Porto 2001, Capital
Europeia da Cultura, há precisamente uma década. Vejamos pois, como, nesta
região, a articulação entre esses diferentes efeitos parece ter, apesar de tudo,
gerado um potencial urbano “em bruto” embora, ainda hoje, mal “lapidado”.
Porto, 2001-2011
Nos anos da viragem do milénio, a cidade do Porto foi marcada
por acontecimentos de ordem política que tiveram importantes implicações urbanas.
Num curto período, a cidade viu o seu Centro Histórico ser nomeado Património
da Humanidade pela Unesco (1996), procedeu à reabilitação de uma parte da sua
frente ribeirinha, a propósito da realização da Cimeira Ibero-Americana (1998),
garantiu os fundos europeus que lhe permitiram lançar, a partir do ano 2000, a
sua desejada rede de Metro, aproveitou a sua nomeação como Capital Europeia da
Cultura de 2001 para renovar a área tradicional da Baixa e lançar a obra da
Casa da Música, mas também, a organização portuguesa do Campeonato da UEFA (Euro
2004) para realizar e aprovar o Plano de Pormenor das Antas, na frente nascente
da cidade.
Essa sucessão de acontecimentos e projectos resultou, não apenas
de um forte dinamismo municipal, ao longo década de 1990, como também de uma
repentina e justa “descriminação positiva” do Norte de Portugal, e do Porto em
particular, por parte do governo central, como contrabalanço político em
relação aos avultados investimentos realizados, à época, em Lisboa, em torno da
Exposição Internacional de 1998 (Expo’98).
Assim, e no âmbito do programa Porto 2001, Capital Europeia da
Cultura foi lançada uma ambiciosa operação de regeneração urbana que procurava
marcar, do mesmo modo, um momento único na história desta cidade, articulando a
programação cultural com a reabilitação do seu tecido tradicional – a Baixa –,
e sobretudo dos seus equipamentos e espaços públicos mais significativos.
Pretendia-se, no fundo, gerar uma “corrente sanguínea” entre os teatros, museus,
cinemas, galerias e praças da cidade, contando para isso com o redesenho urbano
dos diversos passeios e vias, mas também, com a renovação de toda as condutas
infra-estruturais, então consideravelmente obsoletas.
O efeito Barcelona,
tão presente na realização Expo’98, em Lisboa, ganhava no Porto 2001 uma outra
condição: o projecto do espaço público entendia-se, aqui, enquanto “acto de
cultura”, impelindo as diversas equipas de arquitectos envolvidos a operar, de
modo sensível, dentro do coração cultural da cidade.
Inúmeras vicissitudes e resistências políticas impediram que
essa reabilitação se concluísse atempadamente em 2001, mas o seu legado foi-se
tornando claro, à medida que, nos anos sequentes, as obras terminaram e os
diferentes espaços se ocuparam com novas dinâmicas comerciais e empresariais. A
Baixa reabilitada por esse legado é hoje o lugar de encontro de uma nova geração
de city-users que articulam a boémia
e a criatividade – condição indispensável, segundo os especialistas, para a
consolidação de uma “cidade criativa” –, aqui progressivamente estabelecidas
numa espontânea e saudável lógica bottom-up.
Ao longo desses mesmos anos pós-2001, assistiu-se ainda à
consolidação da rede de Metro do Porto, quer por aproveitamento de antigas
linhas ferroviárias regionais, na conexão com os municípios vizinhos, quer por
perfuração das entranhas da cidade histórica, agora habitada por um conjunto de
estações e interfaces. Uma vez mais, e seguindo um método já experimentado
antes, diversas equipas de arquitectos projectaram esses novos espaços,
subterrâneos ou à superfície, mantendo a mesma coerência na adaptação do
desenho aos tecidos preexistentes; uma coerência a que não terá sido alheia a coordenação
experiente de Eduardo Souto de Moura, arquitecto que aqui estendeu a sua reconhecida
mestria, à grande escala infra-estrutural e urbana.
A experiência foi também determinante no traçado dos
equipamentos e dos espaços públicos no Plano de Pormenor das Antas – desta vez
pela mão de Manuel Salgado e do seu atelier RISCO –, um processo em que a
construção de um novo estádio de futebol para a realização do Euro 2004, se
transformaria, afinal, num pretexto reestruturador do sistema oriental de
acessos rodoviários à cidade.
É pois possível afirmar, que o efeito Barcelona foi ganhando, no Porto, uma rara multiplicidade de
dimensões espaciais ao longo do tempo, permitindo a aferição,
projecto-a-projecto, da “justeza” adaptativa do desenho urbano.
O "efeito Bilbau": implantação da Casa da Música no topo da Avenida da Boavista |
O mesmo se poderá afirmar em relação ao efeito Bilbau, também ele presente nas decisões políticas que envolveram a Capital Europeia da Cultura, desta vez em torno da construção de um novo Concert Hall, que albergasse a Orquestra Nacional do Porto. O concurso que presidiu à selecção dessa futura “Casa da Música” teve a clara intenção de marcar o Porto contemporâneo com um novo ícone arquitectónico, situando-o, para esse efeito, num dos eixos terciários da cidade – a Boavista.
O edifício poliédrico proposto por Rem Koolhaas/OMA, vencedor do
concurso, responde ao referido intuito político e institucional: remata, de
modo objectual, a longa avenida ocidental da cidade, e anuncia, pela sua escala
e forma, a excepcionalidade e a contemporaneidade da sua programação. Na
verdade, e desde a inauguração, em 2005, a Casa da Música tem provado a sua
pertinência no panorama cultural português, com claros reflexos a nível
internacional. Tal como o edifício, a sua oferta é poliédrica, abrangendo
diversas facetas da criação musical, clássica e contemporânea, dirigida a
diferentes públicos.
No interior da Casa da Música, um complexo espaço deambulatório
motiva a realização de um caleidoscópico de acontecimentos, enquanto no seu exterior,
a plasticidade do espaço público gera uma fruição da cidade, ora espontânea,
ora programada em noites de festival.
Dir-se-ia que o efeito
Bilbau não dependeu, aqui, de qualquer lógica de “franchising cultural”
como vem ocorrendo em muitas cidades que o “importam”. O novo equipamento era
desejado por programadores e criadores, e foi também tomado afectivamente pelos
cidadãos. Tratou-se na verdade, de um feliz encontro entre um novo e potente “hardware” arquitectónico e um bem
organizado “software” cultural.
Como se percebe, a renovação do espaço público urbano e a
criação de um novo equipamento icónico, constituem, uma década depois, os
legados mais duradouros da realização do Porto 2001, Capital Europeia da
Cultura. No entanto, entre esses dois processos, uma outra dimensão está por
consolidar nesta cidade, sem a qual os seus efeitos regeneradores se poderão
revelar inócuos. Referimo-nos à reabilitação coerente do tecido habitacional do
centro urbano, que permita fixar cidadãos e city-users
aos lugares já dinamizados, para lá dos momentos da boémia, da criação e do
consumo cultural.
"Disneyficação" do Centro do Porto: intervenção no Quarteirão das Cardosas |
Anunciada há quase uma década, pelos executivos municipais pós-2001, a actual política de reabilitação tem-se revelado lenta e desadequada ao carácter transversal das mudanças sociais que descrevemos. Desenvolvida pela Sociedade de Reabilitação Urbana, Porto Vivo, essa política assenta numa lógica de promoção imobiliária determinista, do tipo “pronto-a-vestir”, para um cliente abstracto, de médio e alto “standard”, em detrimento de um processo de (re)alojamento participado, isto é, “feito à medida” dos velhos e novos cidadãos do centro, e sobretudo dessas classes criativas que o vêm dinamizando, comercial e culturalmente. Essa mesma lógica promove a destruição e a impermeabilização do miolo dos quarteirões, por aposta em operações de “cosmética urbana”, onde, normalmente, pouco resta do tecido preexistente para lá da cenografia das fachadas históricas.
O Porto de 2011 vive, assim, sob o
espectro da “periferização” e da “disneyficação” do seu centro tradicional,
revelando-se incapaz de promover uma oferta habitacional tão diversificada,
cosmopolita e interclassista, quanto parece ser a oferta programática dos seus
espaços públicos e dos seus equipamentos culturais. Eis, aqui, um dos paradoxos
gerados pela boa articulação entre o efeito
Barcelona e o efeito Bilbau.
"Periferização" do Centro do Porto: intervenção no Quarteirão do Palácio Atlântico |
Como concluímos no debate na Corunha, essa boa articulação pode ser uma condição necessária à regeneração urbana, mas ainda assim, insuficiente. A cidade contemporânea é um todo, complexo e contraditório, que terá de ser sempre mais do que a soma das partes legadas por grandes efeitos urbanos e arquitectónicos. O Porto é disso um bom exemplo.
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Nuno Grande (Luanda, 1966)
Arquitecto, Doutorado pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de
Coimbra, onde lecciona desde 1993. Docente, por extensão de serviço, na
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde se licenciou em 1992.
Exerceu, na última década, as actividades de programador cultural (Porto 2001,
Capital Europeia da Cultura), de curador (Trienal de Arquitectura de Lisboa,
2007; Bienal de São Paulo, 2007; Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura) e
de crítico de arquitectura, com textos publicados em edições nacionais e
estrangeiras. O seu trabalho crítico debruça-se sobre a relação entre Cultura,
Cidade e Arquitectura, e, mais recentemente, sobre a reconversão programática e
a gentrificação social das cidades europeias, face às transformações recentes
na cultura urbana contemporânea.