Colonialismo como laboratório urbano | Bruno Costa



Bruno Costa
COLONIALISMO COMO LABORATÓRIO URBANO
CONSEQUÊNCIAS TERRITORIAIS E PRÁTICAS COLONIAIS NO CONFLITO ISRAELO-PALESTINIANO


O movimento, ocupação de lugares diferentes em instantes diferentes, é inconcebível sem o tempo; igualmente o é a imobilidade, ocupação de um mesmo lugar em diferentes pontos do tempo.
Jorge Luís Borges
I
Sendo confrontados com as mais diversas opiniões investigativas e jornalísticas sobre o conflito Israelo-Palestiniano - desde os mais recentes ataques à Faixa de Gaza até ao reconhecimento da Palestina como Estado Observador da ONU - é-nos complicado compreender até que ponto essa negação de um Estado que é a Palestina existe como território. Para tal, temos de recuar na História e compreender essa importante diferença entre um reconhecimento administrativo por parte de uma instituição internacional como é a ONU e a realidade territorial a que estão sujeitos diariamente todos os palestinianos, segregados através de uma complexa rede de dispositivos [1] espaciais dispersos por toda a Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém.
II
Israel tem-se afirmado como “Estado que ainda não apagou a ‘violência fundadora’ das suas origens” [2], desde a expulsão dos palestinianos do seu território em 1948 até à construção do Muro de Separação nos Territórios Ocupados, atos que incorporaram o urbanismo como arma física e social. Como disse Aldo Van Eyck num discurso na Universidade de Columbia “a democracia não significa a liberdade para o fascismo” [3], referindo-se ao discurso de ódio transmitido pela arquitectura do pós-guerra e de um novo mundo supostamente mais democrático e livre. Este referia-se ainda à crise no domínio público da disciplina, que deveria produzir elementos comuns, mas que nos deu, desde então, uma cidade “violenta” e sectária, paralela a uma sociedade com os mesmos valores.
No caso particular do conflito Israelo-Palestiniano, as tecnologias de controlo que permitiram a colonização contínua dos palestinianos na Cisjordânia e Faixa de Gaza representam o fim de uma cadeia evolutiva de técnicas e processos de colonização, ocupação e administração desenvolvidos ao longo da história. Apesar das diferenças nos processos de colonização entre os impérios modernos e o Estado Sionista de Israel, os pressupostos que visaram o domínio de uma população e a sua redução a homo sacer [4], tal como, a tentativa de o “domesticar” através do redesenho do seu espaço e da sua cultura, são comuns.
Assim, ao contrário dos impérios modernos, que viam a colónia como uma espécie de continuação da cidade-mãe, a metrópolis [5], exercendo o poder administrativo sobre esta e desenhando o espaço à imagem do seu território, como uma espécie de espelho do colonizador, procurando “educar” o nativo não-moderno através de um controlo legal, cultural e espacial (onde a arquitectura tinha um papel de grande importância por alterar a paisagem permanentemente), o Estado de Israel como “nação-lar” do novo homem judeu, recriado após o Holocausto, nutria um sentimento de pertença por um território que contém as origens do seu povo, mas que, séculos depois da sua partida, era habitado por um “outro”. “Uma terra sem pessoas para as pessoas sem terra”, era a frase mais repetida pelos responsáveis desta ocupação e marca claramente a atitude sionista de anexação, separação e expulsão violenta. Esta crença foi uma realidade criada, de modo a esvaziar um território e uma cultura, a islâmica, de sentido. Os árabes eram, neste caso, projectados por Israel como o verdadeiro “corpo-estranho” de um território com raízes judaicas e esta lacuna introduzida na história, permitia aos sionistas reocupar um território, que lhes pertenceu na era bíblica, de modo “legítimo”. Desde o início da ocupação, nunca existiu uma vontade de conviver com este “outro”, de o incorporar num processo de colonização cultural e espacial, existiu sim uma constante tentativa de não-reconhecimento e de expulsão. Israel via a Palestina como um território sem população e como uma tabula rasa onde poderia pôr em prática a construção de uma nova nação moderna, a partir do zero, conjugando esta criação de uma nova identidade, à história secular do povo judeu.
III
O desenho do espaço israelita teve sempre uma componente laboratorial de experimentação, conjugada com o reflexo das correntes globais de construção espacial. Tal como nos é introduzida por Michel Foucault [6], a continuidade histórica dos processos hegemónicos de ocupação e controlo urbano [7], também são notórios nos Territórios Ocupados, pelas diferentes ferramentas e processos postos em prática ao longo das décadas. O modo como o espaço condiciona e é condicionado pelas ações dos sucessivos governos do Estado de Israel, tem de ser analisado na sua mutação histórica constante.
Desde a fundação de Israel, na era de David Ben-Gurion [8], a ideologia sionista ligada ao socialismo, fez uso da corrente modernista europeia, que via na arquitectura e urbanismo a criação de um novo tipo de cidade e sociedade para um novo homem, fundido com a máquina e com a tecnologia, para iniciar um processo de criação espacial de um Estado moderno e capaz de se reinventar. Mas este aproveitamento era reciproco, já que, grandes nomes dessa corrente usaram cidades como Telavive e Haifa para experimentarem no limite, um novo tipo de cidade, aproveitando um recomeço tão marcante para porem em prática as suas ideias. O mesmo aconteceu na fase de revisão crítica do modernismo e na sua transição estética para o pós-modernismo. Esse período de recriação arquitetónica, que via no renascer historicista uma mais-valia, aproveitou a vontade do judeu em criar uma nova identidade visual que conjugasse o seu passado bíblico com um presente próspero, de modo a quase anular a cultura palestiniana como cultura descendente da tradição judaica e contraditoriamente, como cultura não-genuína daquele lugar. Grande parte do debate pós-moderno foi feito à volta de Jerusalém, uma cidade que concentrava o passado histórico das três principais religiões monoteístas e que serviu de laboratório para experiências estéticas que fundiam um passado desenterrado com os novos métodos e conhecimentos adquiridos. Este caráter experimental sempre correu o risco e efectivamente alterou a paisagem de modo irreversível, expulsando e destruindo, física e simbolicamente, povoados palestinianos já consolidados para os transformar em cenários irreconhecíveis para quem lá habitava, querendo assim apagá-los da memória colectiva de um povo na tentativa de abalar a sua vontade de um regresso a casa.
IV
Já a época áurea de colonização, que despoletou nos anos 80, na Cisjordânia, coincidiu com a presidência de Ronald Reagan nos EUA e de Margaret Tatcher no Reino Unido e com o nascer das gated communities, procuradas e desenhadas para uma classe média em ascensão. Os colonatos israelitas nasceram da iniciativa do governo, que pretendia criar um determinado ambiente para a população palestiniana. A imagem destes colonatos e subúrbios, com as cercas em arame farpado e as patrulhas com soldados em vigilância constante, entram em contraste com os estilos da arquitectura nativa e com as suas formas de vida, numa política que relembra a sectorização e guetização, transmitindo uma mensagem de impossibilidade quanto à partilha de um espaço único para duas classes de pessoas e duas culturas diferentes. Os espaços compartilhados transformam-se assim em campos de batalha cujo aumento da violência é paralelo ao crescimento do ódio entre judeus e árabes, sentimentos que incitaram o nascimento de fundamentalismos de ordem étnica e religiosa.
V
A estratégia israelita de anexar território sem a presença humana foi imposta aos palestinianos através de um complexo sistema compartimentado de exclusão espacial. Mas se inicialmente as políticas de separação eram mascaradas como fórmula para uma colonização “pacífica”, depois dos acordos assinados em Oslo a tomada de decisões unilateral acelerou a fragmentação do território, deixando o exército de Israel no controlo de um “arquipélago” formado por mais de 200 zonas separadas e com autonomia limitada. O poder militar administra hoje estas áreas através de uma filtragem e controlo de fluxos, transformando as fronteiras em mecanismos de controlo. Os checkpoints militares e o Muro de Separação foram introduzidos numa geografia por si só complexa, como armas de segregação e sensores, numa rede de vigilância à escala territorial. Se inicialmente Israel preparou um domínio baseado na expulsão e presença territorial, sob a forma de governação directa das populações ocupadas, actualmente o controlo é pensado por detrás destes espaços amuralhados, através da abertura e encerramento selectivos de diferentes válvulas urbanas. O processo assemelha-se a uma espécie de globalização política por parte de Israel, que aplica os mesmos instrumentos dos EUA na área fronteiriça com o México.
Este estímulo das políticas de medo, separação e controlo visual são o último gesto na consolidação de “enclaves” e na propagação física e virtual de fronteiras no contexto mais recente da guerra contra o terrorismo, impulsionada com os ataques contra as Torres Gémeas de Nova Iorque, a 11 de Setembro de 2001. A arquitectura da ocupação pode ser aqui vista como um acelerador de outros processos da política global, como um caso extremo da globalização capitalista e consequentemente da sua política espacial. Aqui, a expressão laboratório é retratada pelas técnicas de domínio, bem como pelas técnicas de resistência que se multiplicaram neste “presente colonial” [9], com repercussões num contexto global, de que nos fala Derek Gregory. Os Territórios Ocupados constituíram uma espécie de descrição esquemática de um sistema conceptual cujas propriedades servem para compreendermos outros problemas territoriais. Um caso flagrante está na grande semelhança entre a fase mais recente deste conflito e a invasão norte-americana nos territórios do Afeganistão e do Iraque, onde é clara a aplicação dos mesmos padrões e mecanismos violentos, do ponto de vista militar e urbano, num renascer do sentimento orientalista e das políticas de colonização económica.
VI
Nesta reflexão a linha cronológica que Foucault tenta compreender espacialmente, pelo exercício do poder através do conhecimento [10], é iniciada com a destruição e expulsão da população árabe, seguida da ocupação territorial através da construção de uma rede de pontos geográficos estratégicos conhecidos como colonatos, que incapazes de garantirem a segurança dos seus habitantes contra ataques da “guerrilha” palestiniana foram mais tarde cercados por um elemento de separação e controlo trazendo-nos à espacialidade fragmentada e tridimensionalmente complexa de hoje, como o estado final e utópico da separação espacial entre israelitas e palestinianos, que demonstra a impossibilidade de qualquer resolução, quer de divisão, quer de partilha. A separação vertical, com cada um dos países a ocupar diferentes camadas espaciais, consiste num processo experimental de distanciamento, onde as várias fronteiras do conflito se manifestam em diferentes latitudes topográficas. Esta solução, inicialmente sugerida pelo arquitecto israelita Tuvia Sagiv visou conectar os diferentes colonatos por linhas infra-estruturais desenhadas num espaço tridimensional como solução unilateral. Esta solução surge como a corporalização do falhanço que foram as várias tentativas de partição e até encarceramento dos palestinianos no seu próprio território. Esta ocupação teve sempre tremendos efeitos no tecido urbano porque operou sempre de modo espacial, multiplicando a divisão de soberanias pelo território. A sobreposição de duas geografias políticas que tentam habitar um mesmo espaço fragmentado foi o fruto de intervenções de planeamento que estiveram sempre dependentes de decisões políticas.
VII
Chegamos então a um ponto em que a violência imprimida na paisagem alterou por completo o país que os palestinianos conheciam. Hoje a Palestina não é mais do que um conjunto de espaços separados, ou um território fragmentado, efectivamente administrado por Israel. Esta descontinuidade espacial impede a construção de um Estado soberano, até pela inexistência de uma fronteira que divida os dois países (o que temos é um conjunto de fronteiras impostas, que criam “enclaves” e uma divisão demasiado complexa para poder ser respeitada) e Israel, que apesar da ilegalidade do processo, não está na disposição de negociar uma devolução ou uma retirada dos Territórios Ocupados na Cisjordânia, insistindo em prolongar os mecanismos de ocupação até conseguir eliminar qualquer vestígio físico e humano da Palestina (a atitude mais recente de Benjamin Netanyahu que recusou o estatuto concedido pela ONU à Palestina e declarou o apoio à construção de novos colonatos na Cisjordânia representa a unilateralidade dos processos de negociação), numa atitude que nos trouxe a uma última fase, onde os palestinianos, encerrados dentro dos seus pedaços de território, resistem e criam anticorpos étnicos contra a população judaica, regredindo na sua vontade de negociar e aceitar uma solução de dois estados e esperando pacientemente regressar a casa e habitar todo o território da Palestina pré-1948. Um sentimento fomentado principalmente dentro dos campos de refugiados, que mantêm a sua situação precária, negando aquele espaço como seu e esperando voltar a um lugar que já não existe tal como o deixaram.








----------------
IMAGENS
00. Checkpoint de Beit Iba, 2005. In In http://thefunambulist.net/2012/02/18/palestine-the-ordinary-violence-of-the-colonial-apparatuses-in-the-west-bank/
01. Novos traçados rasgados na malha urbana de um campo de refugiados, 2002. In WEIZMAN, Eyal. Hollow Land, Verso Books, London, 2007 p. 202
02. Vista aérea do colonato comunitário de Eli, Nablus, 2002. In SEGAL & WEIZMAN, Rafi, Eyal. A Civilian Occupation, Verso Books, London, 2003 p. 14
03. Muro inacabado na região de Jerusalém. In WEIZMAN, Eyal. Hollow Land, Verso Books, London, 2007 p. 160
04. Urbanismo Vertical. Viaduto de Gilo na região de Belém, Cisjordânia. In http:// thefunambulist.net/2012/07/21/ palestine-village-of-al-walajah-a-prison-to-be/
05. Dinâmicas fronteiriças, 1947-2010. In SHOSHAN, Malkit. Atlas of the Conflict, 010 Uitgeverij, Rotterdam, 2008 pp. 32-33
06.  Aparatos coloniais na Cisjordânia. In LAMBERT, Léopold. Weaponized Architecture, DPR, Barcelona, 2012 p. 68
----------------
 (1) Quando utilizo o termo dispositivo refiro-me ao “conjunto completamente heterogéneo composto de discursos, instituições, formas arquitectónicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, filosóficos, morais e proposições filantrópicas, [em síntese], ao sistema de relações que pode ser estabelecido entre estes elementos.” como refere Michel Foucault. Já Giorgio Agamben, expande a cadeia exposta por Foucault no seu livro, What is an Apparatus?, chamando dispositivo a “qualquer coisa, que tenha, de algum modo, a capacidade de captar, orientar, determinar, interceptar, controlar, proteger ou assegurar os gestos, comportamentos, opiniões ou discursos dos seres vivos”.

(2)  ZIZEK, Slavoj. Violência, Relógio D’Água, Lisboa, 2009 p. 107.

(3) SORKIN, Michael. All Over the Map, Verso Books, London, 2010 p. 58.

(4) Palavra do Latim – Figura obscura da lei romana: uma pessoa que é excluída de todos os direitos civis. 

(5) AGAMBEN, Giorgio. “Metropolis” 2010. In http://thefunambulist.net/2010/12/17/philosophy-metropolis-by-giorgio-agamben/

(6) FOUCAULT, Michel. Security, Territory, Population, Pelgrave MacMillan, USA, 2007

  FOUCAULT, Michel. Society Must Be Defended, Picador, London, 2003

  FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish, Random House USA Inc, New York, 1995 

(7) Michel Foucault estudou os comportamentos e instituições sociais como resultado da interacção do homem com o espaço privado, mas sobretudo com o espaço comum a todos, ou seja, o território ou a cidade. Este explica-nos a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de segurança – onde a economia de poder, tem a forma de, ou é dominada pelas tecnologias de segurança. Neste particular faz-nos compreender o porquê das “artes de governar” terem sido preteridas em favor das “teorias de soberania política” na época pré-moderna, referindo que até ao século XVII a configuração das monarquias administrativas impedia um estado de governação pela ausência de ferramentas e como tal dá como exemplo os paradigmas da lepra (cidade definida em termos de soberania, onde os doentes são postos de parta da sociedade “pura” através de dispositivos legais) e da praga (exemplo da sociedade disciplinar onde é imposta uma grelha ao território urbano, para ser possível controlar os doentes através de uma complexa rede de dispositivos que individualizam o espaço) para assim compreender a relação entre espaço urbano e governabilidade. Já na passagem para o século XVIII, com o crescimento demográfico e a queda dos muros que envolvem e protegem as cidades, são desenvolvidas novas técnicas e ferramentas (como por exemplo, a estatística) que permitem a descoberta de novos fenómenos populacionais, facilitando às instituições que representam o poder a recorrer a novos procedimentos burocráticos, análises, cálculos e outros factores que visam o controlo da sociedade. Foucault apercebe-se então, que os mecanismos observados em diferentes períodos se vão influenciando, existindo sempre uma clara necessidade de complexos dispositivos disciplinares para os mecanismos de segurança funcionarem e que as novas formas que emergem não fazem as anteriores desaparecer, ou seja, quando uma tecnologia de segurança é posta em acção, pode fazer uso de, ou multiplicar, os elementos judiciais e disciplinares.

(8) Primeiro chefe de estado de Israel. Ben-Gurion foi um líder do movimento do Sionismo socialista e um dos fundadores do Partido Trabalhista, que esteve no poder em Israel ao longo das primeiras três décadas da existência do Estado.

(9) GREGORY, Derek. The Colonial Present, Blackwell Publishing Ltd., Oxford, 2004

(10) Quando falo de aplicação do poder através do conhecimento, refiro-me exactamente à importância do conhecimento do território e população através de uma recolha de dados e necessidades que permitam intervir no espaço de modo a limitar e controlar um elemento através de dispositivos físicos. No caso particular do conflito Israelo-Palestinianos é evidente a consolidação desses processos por parte de Israel.


----------------
BRUNO COSTA
Nasce em Braga a 1 de Setembro de 1988, conclui o Mestrado em Arquitectura pela FAUP (Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto) em 2012, tendo estudando um ano na Universidade de Buenos Aires como aluno de intercâmbio.
----------------