PEDRO LEVI
BISMARCK
O INIMIGO INVISÍVEL
“O que nós (não) vemos, o que nos olha”
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Havia
uma certa estranheza nessa coincidência entre a manifestação de 15 de Setembro
e mais um desses festivais, o Optimus D’Bandada. E
o que na verdade esteve em palco, nessa tarde de fim de verão no Porto, para
além da manifestação em si, e tão despudoradamente, foi o frente-a-frente entre
dois dispositivos absolutamente antagónicos: o dispositivo da mobilização política
(a manifestação) e o da desmobilização política (o festival). Como sempre essa
batalha passou despercebida e, também, como sempre, o Inimigo (o capitalismo e os seus aparatos) esteve em campo sem ser
reconhecido como tal.
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Havia uma certa estranheza nessa coincidência
entre a manifestação do dia 15 de Setembro e mais um desses tantos festivais
que ocupam habitualmente o centro das cidades, o Optimus D’Bandada, a decorrer à mesma hora na Baixa do Porto. Havia
um certo desconforto, mas que parecia demasiado óbvio ou demagógico para poder ser
objecto de qualquer crítica. Mas, então, como podemos compreender essa
estranheza que a coincidência entre manifestação e festival fizeram desvelar?
Será que o direito ao político invalida o direito ao prazer? Será que a
manifestação invalida o entretenimento? E se não, se o protesto não invalida a dança (como anuncia a reportagem do P3), porque é que fica este desconfortável ruído de fundo?
O que na verdade esteve em palco, para além
da manifestação em si, e tão despudoradamente, foi o frente-a-frente entre dois
dispositivos absolutamente antagónicos: o dispositivo da mobilização e da acção
política (a manifestação) e o da desmobilização política, o dispositivo do espectáculo
(o festival). Mas a estranheza de toda esta coincidência não está, simplesmente,
na presença, no mesmo lugar, daqueles que ocupam a rua em protesto e dos outros
que se enfileiram nos passeios à espera de entrar num qualquer bar. Mas, no
facto da batalha entre os dois dispositivos se ter travado, como sempre,
silenciosamente e do Inimigo ter
estado em campo, também e como sempre, sem ser reconhecido. E este Inimigo não é o governo e o seu
catastrófico desígnio, mas um outro, bem mais poderoso: o capitalismo com toda a
sua panóplia infindável de dispositivos
(televisão, cinema, festivais, universidades, etc.), que todos os dias nos
capturam para fora da política e para fora de nós próprios. (Aliás, a prova
cabal é que no final a manifestação nem precisou de polícia, pois o Inimigo estava logo ali com as suas armas sedutoras da música e da cerveja).
Aquilo a que assistimos, nessa tarde de sol
de fim de verão, para além de toda a esperança nos efeitos mais imediatos da
manifestação, foi nem mais nem menos que a impossibilidade de qualquer verdadeira
mudança. E porquê? Porque, simplesmente, ainda não aprendemos a reconhecer aquele
que é o verdadeiro Inimigo da democracia
e da res publica que queremos defender,
e, sobretudo, ainda não aprendemos a ter consciência dos meios de captura que este Inimigo nos lança diariamente, anulando
sub-repticiamente a nossa consciência política, a nossa capacidade de agir e a
nossa liberdade. E esta não é o direito a opinar e a fazer tudo o que se deseja
até ao êxtase, mas a vontade de querer saber: os princípios, as leis, as éticas
que nos formam e condicionam a nossa própria opinião. Porque penso assim?
Porque não penso de outro modo? Um
certo «Ousa saber!», como dizia Kant.
A democracia não é o paraíso eterno, dado
por adquirido, a quem nos coube agora a singela tarefa de cuidar e limpar. Ela está
sempre em perigo. E o Inimigo nunca
pára de trabalhar: alimenta a nossa docilidade e ócio, desmantela a nossa
capacidade de acção e de comunicação, reduz a cultura à condição de
entretenimento, as escolas a máquinas de produção de mão-de-obra barata e, a nós,
seres que se acreditam emancipados, à mera condição de consumidores de bens e
informações e, como diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk, os consumidores finais estão sempre próximos
das cloacas. O que está para ser exigido ainda não o foi. E não é apenas
mais consumo e mais dinheiro, mas reivindicar o regresso da educação e de uma
certa definição de cultura. E, sobretudo, exigirmos a nós próprios, mais
formação e mais conhecimento. Não só para não sucumbirmos perante o espectáculo
de uma política sem língua e sem voz consagrada ao fait-divers, mas sobretudo, para não ficarmos reféns desses
dispositivos que a todo o momento procuram anular a nossa consciência e acção
política.
Só quando, perante nós, aparecer como terrivelmente
impúdica a coincidência, no mesmo espaço e no mesmo tempo, do dispositivo de
emancipação (a política) e do dispositivo do ócio (o espectáculo) estaremos
preparados para reconhecer esse verdadeiro Inimigo
e, então, exigir dele e de nós um outro modelo de sociedade e de
desenvolvimento. Um modelo que não se reduza ao puro consumismo, ao mero mercantilismo
de tudo (onde até a língua portuguesa já foi sacrificada), mas um modelo cuja
dignidade e o valor do homem não se construa na competição, no individualismo e
no trabalho, mas numa relação justa com o ecossistema, com a comunidade e com o
futuro. Há muito mais para exigir. Sem isso as lutas de hoje de nada servirão!
Pois o Inimigo continuará o seu trabalho, esse Inimigo, como naquelas
fábulas, em que à medida que vai alimentando a sua presa, está já a traçar o
seu destino fatal. E se há uma natureza altamente predatória é, precisamente, a
do capitalismo.
Se, por um lado, só a política nos poderá salvar, por outro, só a poesia poderá salvar a política. E, por isso, valerá a pena recordar as
palavras do poeta russo Mayakosvky, quando em 1917, em pleno mês de Outubro, à
pergunta, porque não se inscrevia no Partido Comunista, este respondia que,
para ele, esta pergunta não se punha, já que o que estava em causa era a sua
própria Revolução: “Deve-se
aderir ou não aderir [ao partido]? A mim, esta pergunta não se me punha. Era a
minha Revolução. Fui para Smólni. Trabalhei. Em tudo o que era preciso. Começam
a reunir.” (Mayakovsky, 1917)