Pedro Levi Bismarck
A
comunidade contra o estado
O Projecto Es.Col.A e o Bairro da Fontinha
Porque o facto novo da política que vem é que ela não será
já a luta pela conquista ou controlo do Estado, mas luta entre o Estado e o
não-Estado (a humanidade), disjunção irremediável entre as singularidades
quaisquer e a organização estatal
Giorgio
Agamben
Creio
no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas
Na ocupação do mundo pelas rosas
Natália
Correia
Não
há nada mais terrível para o ‘estado’ do que ver a verdadeira democracia a
funcionar! E porquê? Porque recorda ao ‘estado’ esse terror vagamente informulado na sua génese, isto é, que a
autogestão daquilo que é público e a construção da comunidade se possam constituir
fora dos seus limites e da sua esfera de acção (e, por isso, fora do seu
controlo). Em suma: que a própria sociedade possa ser capaz, por si, de o
substituir e fazer aquilo que o ‘estado’, a câmara municipal, a política, foram
incapazes de fazer e pensar. A polícia intervém em defesa do ‘estado’, porque o
que está em causa é o falhanço do ‘estado’ enquanto ‘estado’ e a exposição
súbita das feridas que fazem a sua aparente confiável democracia.
O
despejo do Projecto Es.Col.A. é o exemplo disso mesmo. E só essa ferida aberta pode
explicar o modo como a Câmara Municipal do Porto geriu este processo. Desde o
excessivo uso da força policial, à incapacidade de diálogo e ao preconceito
ideológico, o que funda a acção da Câmara é ter consciência que um movimento
como o Es.Col.A, a substituiu numa tarefa que ela própria não conseguiu (ou nem
sequer pretendeu) desenvolver, deixando uma escola (e a comunidade) durante mais
de 5 anos ao abandono.
Podemo-nos
perder em muitos problemas técnicos e, sobretudo, legais em torno desta
questão, mas o fundamento teórico e político em causa é este: por uma vez, uma
comunidade organizou-se em torno de um programa educacional e cultural sem
necessidade do ‘estado’, propondo uma plataforma comunitária numa zona
deprimida da cidade; por uma vez, uma comunidade juntou-se para contrariar o
grave problema de abandono do centro da cidade e fez aquilo que a Câmara sempre
se recusou a fazer; por uma vez, a democracia teve asas para trabalhar e, mais
uma vez, a Câmara Municipal do Porto recusou a democracia.
Acima
de tudo, esta Câmara é a epítome do ‘estado’ autoritário mas completamente
ineficaz, que nada fez e nada deixa fazer. E é esta mesma Câmara, que em sua
defesa usa o argumento da propriedade
pública, que ainda há pouco meses vendeu em hasta pública o miradouro da
Bataria da Vitória e que não fez mais que arrendar,
nos últimos anos, todos os grandes equipamentos públicos da cidade (porque
ela própria assumia a sua incapacidade de os gerir).Tem sido a Câmara, esta
Câmara, quem mais tem contribuído para a espoliação do nosso património físico
e cultural, que mais tem contribuído para a pobreza do nosso ambiente urbano. E,
por isso, o perigo da delapidação da coisa pública, daquilo que afinal é
pertença da comunidade, não está na acção do Projecto Es.Col.A, mas bem pelo
contrário, em toda a acção política da Câmara Municipal do Porto.
Mas
para que esta questão possa ser efectivamente discutida, é preciso colocar o
problema da Es.Col.A na esfera da política e não reduzi-la a um simples
problema de lei. A tendência do pragmatismo actual que tudo quer reduzir à lei é o grande perigo do esvaziamento da
política. É a ética que funda a lei e não a lei que funda a ética.
Aquilo
que é absolutamente necessário é que tudo isto nos sirva para, uma vez mais,
pensar o que faz e o que é a essência do exercício quotidiano da democracia; pensar
como podemos voltar a colocar a política no centro da nossa prática quotidiana
e reclamar aquilo que trinta anos de crescimento económico, consumismo e
bem-estar afinal nos espoliaram: isto é, o nosso acesso à política, a nossa
capacidade de pensar a política e o ‘estado’ como parte fundamental da nossa
vida em comunidade.
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Imagem via: Es.Col.A : Recuperação das instalações da Escola da Fontinha
por membros do grupo Es.Col.A.