Pedro Levi Bismarck
I
O colectivo Esta é a minha cidade? está a organizar um concurso de ideias para a Praça de Lisboa, no Porto. Concurso que sob o lema NO RULES, GREAT SPOT! (uma frase grafitada num dos muros da praça) tem como objectivo provocar um debate intensivo sobre a reabilitação urbana, mas também sobre os modelos e procedimentos que têm orientado algumas estratégias de intervenção. Nomeadamente, os concursos lançados pela Câmara do Porto e pela SRU-Porto Vivo para espaços públicos da cidade (como o da Praça de Lisboa) cujo grau de complexidade – concurso de concepção, projecto, construção, manutenção e exploração – deixou de fora tanto arquitectos como cidadãos, anulando qualquer possibilidade de debate e acentuando esse divórcio cada vez maior entre cidadãos e a sua cidade.
Com apenas um projecto apresentado – o projecto da empresa Bragaparques, desenhado pelo gabinete de arquitectura Balonas & Menano – o destino da Praça de Lisboa foi assim decidido, sem que tivesse tido lugar qualquer discussão e debate que um espaço público central da cidade como este certamente mereceria. É precisamente este debate que o concurso NO RULES, GREAT SPOT! pretende resgatar, procurando reafirmar a importância da participação tanto de arquitectos como dos cidadãos nos processos que pensam e constroem a cidade. E talvez assim se possa perceber que, ao contrário do que pensa a maior parte dos decisores políticos, para quem os concursos não são mais que o mecanismo burocrático que é preciso respeitar, estes não são tanto o modus operandi que escolhe esta ou aquela proposta, mas a oportunidade de um diálogo que restabelece uma ligação próxima entre cidadãos, arquitectos e políticos.
Para os decisores políticos, e sobretudo para estes da cidade do Porto, o modelo do concurso e o consequente debate continua a ser não tanto a possibilidade íntima e frutífera de um diálogo com os cidadãos na procura e na construção de uma estratégia colectiva e participada, mas um simples trâmite burocrático necessário, ou melhor, um espécie de ameaça, de esquerda, dirá Rui Rio, que não irá mais que dificultar e atrapalhar a concretização dos seus projectos. Mas falta compreender que a essência da democracia não está apenas no gesto que coloca o voto na urna ou nos trâmites burocráticos dispostos na Constituição, mas na criação de um espaço colectivo de participação e debate. Quando se fala da pobreza da nossa democracia é disso que se fala, da escassez das formas e dos modos que perfazem a nossa vida democrática, a ausência de modelos de participação, escrutínio, discussão dos cidadãos nas actividades políticas. Mas isto não quer dizer que a culpa seja dos cidadãos, mas também não é apenas dos políticos, mas sim de uma permanência e de um pré-juizo que teima em ver na participação e na discussão, e na própria prática crítica urbana, um simples feitio contestário e provocativo de índole esquerdista ou uma manifestação irreverente da juventude. O facto de não haver uma crítica de arquitectura consolidada em Portugal que escrutine permanentemente a construção da cidade é disso exemplo.
Quando o presidente da Câmara Municipal do Porto identificava há dias, num programa da televisão, que a principal dificuldade da governação camarária era o método de Hondt, que obriga a presença de vereadores dos partidos mais votados no executivo e não apenas do partido vencedor, está precisamente a reflectir esse preconceito e essa permanência que despreza qualquer debate e participação, compreendendo a cidade como mera gestão de um negócio, e não como projecto colectivo, partilhado e informado. Talvez porque afinal o debate exige de nós sempre um pouco mais: mais esforço e humildade, mais informação e formação, mais abertura e sabedoria. Tudo noções demasiado complexas para o árido vocabulário político.
É esse terrain vague da participação que o colectivo Esta é a minha cidade?, através deste concurso de ideias, tenta ocupar, procurando afirmar a necessidade de um debate sem o qual a reabilitação da cidade dificilmente poderá prosseguir, envolvendo cidadãos e arquitectos, mas também instituições como a Ordem dos Arquitectos ou a Faculdade de Arquitectura que entre a escritório-cracia e a teo-cracia parecem esquecer-se do que está, de facto, na génese da sua prática e do seu sucesso. O Pritzker está apenas para os génios, paira alto na montanha do Olimpo, mas nós que vivemos aqui, no espaço comum e público da Ágora, queremos é, de facto, pensar e discutir as estratégias que podem fazer desta cidade um lugar outro, mediando interesses especulativos, imobiliários e privados, com desejos e politicas colectivas. Tornando a reabilitação urbana não apenas num negócio last minute de salvação de empresas de construção, mas uma oportunidade de construir sobre os edifícios do passado, que ainda não são ruínas, a possibilidade de um outro futuro, do nosso futuro. Mas também, compreender que o destino da cidade não pode passar senão por nós, pela nossa participação, e que só reclamando e tomando uma posição nesse espaço poderemos de facto afirmar que estamos e vivemos numa democracia.
II
Mas, para isso é necessário reconhecer que se há algo que a democracia exige é não apenas informação, mas também formação e educação. Mas o que é educação? Não é tanto o atingir de um determinado tipo de conhecimentos ou de graus académicos, mas a capacidade de transmissão de um conjunto de valores culturais e sociais; a capacidade de construir e de dar ferramentas para criar um pensamento, uma ideia ou um gesto que se possa fundamentar em algo mais que num mero senso comum, mas numa margem ética – isto é, numa intrínseca relação entre desejo individual e responsabilidade colectiva (entre a minha vontade individual e o meu papel enquanto cidadão). Valores que discutimos desde que o homem grego se fundou enquanto ser político, mas que tendem a ficar soterrados pelas burocracias instituídas, pelo imediatismo político, pelos comprometimentos economicistas que entrando nos sítios mais insuspeitos tudo parecem validar.
As Universidades e as Faculdades, o último reduto de um espaço de crítica e participação, de um espaço atento de escrutínio da actividade política e colectiva, parecem ter abandonado definitivamente esse lugar que já foi o ex-libris da sua presença no espaço da comunidade e entretêm-se agora na paisagem inebriante dos ratings, dos rankings, das fcts. Esquecendo que fazem parte de uma cadeia de transmissão única, de um espaço de reflexão insuperável, que faz da preparação do aluno um espaço para o futuro, um espaço de reflexão sobre as condições do presente na vertigem entre a fuga do passado e a iminência do futuro. A Universidade não é apenas o lugar que forma o aluno para uma actividade específica ou determinada, mas o lugar próprio que inscreve essa actividade individual num contexto cultural mais vasto e abrangente, como actividade que nunca se encerra em si mesma, mas que se abre, que participa todas as vezes na construção de uma matéria comum e colectiva. O que faz a univers(al)idade da Universidade é precisamente esse limiar de intersecção entre disciplinas, essa partilha do saber, esse voltar para fora, que radica o valor de cada actividade individual no espaço colectivo, procurando sempre mais (in)formação, para que a prática de cada um possa ser ancorada num conhecimento tão prático e singular como universal e informado.
III
O problema, ou talvez o mal-estar, que está na génese deste concurso, não se situa num ataque consumado contra ninguém especificamente, mas contra um modo de fazer e de estar que revela não mais que a imaturidade da nossa consciência e prática democrática: a ausência de debate e diálogo entre políticos e cidadãos, entre políticos e técnicos especializados (Arquitectos, Faculdades); a ausência de lugares próprios para uma participação cívica mais alargada; a inexistência de um discurso organizado e crítico dos arquitectos perante o problema da reabilitação; a demissão das Universidades como lugares de participação democrática e de pensamento crítico sobre a cidade – e nisso as Faculdades de Arquitectura são exemplos claros de uma prática cada vez mais orientada e veiculada para o mercado de trabalho ou para os rankings de avaliação, e cada vez menos para uma reflexão crítica sobre a cidade e sobre a própria arquitectura como disciplina e prática cultural. Mas a isso tudo, junta-se ainda a chegada massiva de alunos e estudantes às Faculdades com um background cultural cada vez mais frágil e superficial, fruto de anos de reformas educativas, de Novas Oportunidades e de uma cultura essencialmente virtual e visual marcada tanto pelo facilidade de acesso à informação como pela overdose de informação. Um novo paradigma ao qual as Faculdades, e mais especificamente as Faculdades de Arquitectura, ainda não se adaptaram e cujas consequências são tão previsíveis como negativas.
É neste território que o colectivo Esta é a minha cidade? e este concurso se posicionam, não querendo mais do que convocar todos para uma outra dimensão participativa da cidadania: sair do reduto da discussão ou da conversa para o campo da prática e da formulação de hipóteses (e, por isso, foi escolhido o modelo do concurso e não o formato da mesa redonda ou do colóquio). E essa é a grande oportunidade que este concurso oferece a todos os interessados: mostrar a essencial importância do diálogo perante a pluralidade e a partilha de propostas. Um diálogo democrático, que para aqueles que decidem é necessário, não apenas porque se trata de agradar a alguns espíritos mais românticos, mas porque nesse envolvimento de todos está a garantia de participação dos melhores técnicos, mas também a garantia do sucesso dos programas previstos e das futuras utilizações. Uma comunidade envolvida irá certamente contribuir para uma utilização activa dos projectos propostos. E é precisamente isso que a Câmara Municipal e a Sociedade Reabilitação Urbana ainda não conseguiram compreender, continuando a fazer da reabilitação um processo fechado, exclusivo, um mero procedimento burocrático, e não uma oportunidade derradeira de requalificação do edificado e, sobretudo, da qualidade e da potencialidade de um modelo de vida urbana, de vida em cidade, que trinta anos de (não) políticas urbanas periféricas e especulação quase destruíram.
IV
Por fim, as críticas que já se fizeram ouvir a este concurso de ideias, levantando questões de timing ou questões éticas (confundindo ética com corporativismo), reflectem não mais que o mesmo problema que está no centro da crise política e democrática que vivemos, e que não é mais que a dificuldade de construção de um discurso colectivo que consiga superar todos os interesses individuais, todas as relações (e sentimentos) pessoais, todas as defesas corporativistas. E que, ao invés, vê ainda na cidadania um acto de provocação naif e inconsequente, vê na tomada de posição pública uma insinuação ou um pretensiosismo, não se conseguindo libertar nunca das relações pessoais na conquista de uma ética colectiva e de um discurso capaz de conciliar o individual e o universal. Se há desconforto de alguns, só pode ser o desconforto perante os últimos trinta anos de construção sem regras que marcaram a gestão da cidade e da coisa pública, que abandonaram os centros das cidades e os levaram quase até à ruína. Trinta anos de especulação, de planos inconsequentes, de legislações absurdas, obsoletas ou incumpríveis, e de desrespeito pelos mais elementares direitos comuns. Quando dizem: este não é o timing certo, chegaram tarde, já não há nada a fazer. Sim, chegamos! Chegamos todos tarde de mais, não um ou dois anos, mas trinta anos atrasados. E este é o problema ético, o verdadeiro imperativo ético que se coloca irreparavelmente perante nós, isso se não quisermos ver os erros do passado repetirem-se de novo.
Imagem: João dias, documentário: As Operações SAAL
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