A CIÊNCIA DO LIVRE ARBÍTRIO NÃO SE PRESTA AO ACASO





Ricardo Neto
A Ciência Do Livre Arbítrio
Não Se Presta Ao Acaso


If the moon, in the act of completing its eternal way around the earth, were gifted with self-consciousness, it would be fully convinced that it was travelling its way of its own accord… So would a Being, endowed with higher insight and more perfect intelligence, watching man and his doings, smile about man’s illusion that he was acting according to his own free will.
Albert Einstein

Livre Arbítrio: Uma breve introdução à problemática
É do senso comum que todos os sistemas biológicos, Homem incluído, obedecem às leis naturais da Física e Química. Contudo, é também vastamente aceite que o Homem tem a liberdade de tomar decisões conscientes, que não reflectem simplesmente a composição química do indivíduo na altura em que a decisão é tomada – sendo que esta composição química é determinada pela história genética e ambiental e um certo grau de estocasticidade (a aleatoriedade, ou o acaso, inerente ao comportamento de todas as partículas). Apesar de, ao longo da história, vários filósofos terem repetidamente questionado a validade do livre arbítrio, muitos biólogos vivem confortavelmente convictos da sua existência. Mas tal convicção parece não ser mais do que uma crença continuada no vitalismo – a aceitação que há forças que governam o mundo biológico que são distintas das que determinam o universo físico – um conceito que os biólogos se orgulham de ter descartado há já vários anos. Aqui, o exercício que proponho é um olhar crítico sobre o tema e uma discussão acerca do papel que a ciência poderá ter em fornecer uma resposta definitiva sobre este aspecto tão fundamental da natureza humana.

Definição, dogmas e crítica
Classicamente, e como definido por Searle, o livre arbítrio designa a convicção de que poderíamos ter optado por uma decisão diferente daquela que efectivamente tomámos. Um caveat desta definição é não resolver a ambiguidade entre livre arbítrio e a aleatoriedade inerente à estocasticidade dos processos biológicos. Por este motivo, talvez seja mais claro definir livre arbítrio como a convicção de que existe uma componente do comportamento humano que ultrapassa as consequências da história genética e ambiental do individuo, assim como da possível aleatoriedade associada às leis naturais.
Desde os primórdios da civilização Grega que existe uma manifesta preocupação em reconciliar (ou não) as leis da natureza com a aparente capacidade que o Homem tem de tomar decisões conscientes que parecem não ser um mero reflexo do seu historial bioquímico. Os Epicuristas, na tentativa de reconciliar o fenómeno de causa-efeito, que eles sabiam ser uma característica do mundo físico, com a contrastante liberdade aparente do comportamento humano colocaram a seguinte questão – “se todo o movimento está interligado, o novo surgindo do pré-existente numa ordem determinada – se os átomos nunca se desviam do seu movimento original, para gerar novo movimento que irá quebrar a perpétua sequência de causa e efeito – então qual é a origem do livre arbítrio demonstrada pelos seres vivo que habitam a Terra?”. Para solucionar este problema foi proposto de que os átomos de facto ocasionalmente podem exibir desvios aleatórios. O componente causal destes desvios aleatórios poderiam ser os Deuses Gregos, dos quais não haveria escassez.
No século XVII, Descartes, ao discutir o que é muitas vezes referido como o “mind-body problem”, propôs que o corpo obedece às leis do mundo físico, enquanto a alma (e como tal a mente) não estaria restringida a tais limitações. Apesar de Descartes ter proposto algumas teorias, o mecanismo subjacente a este processo era, compreensivelmente, não compreendido. Ainda em referência a este problema, Eccles, numa proposta imaginativa, sugeriu que a interacção entre mente e alma poderia ser governada pela incerteza da mecânica quântica. A capacidade para incutir movimentos aleatórios aos átomos – um requisito para a existência de livre arbítrio – seria possível através da combinação da “magia da alma”, oferecida pelo dualismo de Descartes, e o princípio de incerteza de Heisenberg. Enquanto esta dualidade Cartesiana, oferece, pelo menos superficialmente, um mecanismo atractivo que poderia ser usado para explicar a existência de livre arbítrio, a credibilidade de tal mecanismo dentro dos círculos científicos é próxima de nula (como elegantemente exposto por António Damásio em o “Erro de Descartes”). Contudo, se decidirmos descartar esta “crença de luxo” que invoca a magia da alma, então há pouco mais para oferecer em defesa do conceito de livre arbítrio. Enquanto muitas teorias reclamam oferecer uma explicação para o livre arbítrio, tais modelos pecam pela falta de detalhes subjacentes ao seu mecanismo. É ainda frequentemente sugerido que cada indivíduo é livre para escolher e modificar o meio em que se insere e que, como tal, tem poder de decisão sobre o seu destino. Contudo, um céptico em relação ao livre arbítrio argumentaria que qualquer acção, por mais livre que possa parecer, é simplesmente uma consequência de todos processos físico-químicos experienciados pelo indivíduo até alguma fracção de micro-segundo antes de qualquer acção.

Uma herança cultural com valor social
Mas como pode ser a convicção no livre arbítrio tão universal, perante argumentos tão sólidos face à sua existência? A aceitação do livre arbítrio assenta provavelmente em vários factores, nomeadamente: (1) a constante sensação de que fazemos decisões que dirigem o nosso comportamento e que aparentemente têm origem numa escolha do indivíduo; (2) a consciência da aparente utilidade social do conceito e a consequente relutância em perturbar o status quo. A crença no livre arbítrio dá-nos a sensação de controlo sobre as nossas acções e oferece-nos o poder de responsabilização, o que para o funcionamento da sociedade é altamente benéfico. O conceito de moralidade e o próprio sistema judicial têm por base a aceitação de temos possibilidade de veto sobre os nossos actos. Em relação a este segundo factor, Darwin escreveu o seguinte: “This view (the rejection of free will) will not do harm, because no one can be really fully convinced of its truth, except man who has thought very much, and he will know his happiness lays in doing good and being perfect, and therefore will not be tempted, from knowing everything he does is independent of himself to do harm”. A propósito destas afirmações de Darwin, Robert Wright escreveu “In other words: so long as this knowledge is confined to a few English gentlemen, and doesn´t infect the masses, everything will be alright.”
É possível que herdemos a convicção que a existência de livre arbítrio é perfeitamente lógica e não merece ser questionada. A nossa maneira de pensar e agir reflecte a nossa constituição genética e a herança de valores culturais e, em certas circunstâncias, há ideias e valores que podem prevalecer apesar da lógica falaciosa subjacente. A forma como em sociedade pensamos sobre o livre arbítrio (e religião) pode ser um dos exemplos desse processo – o conceito pode ter valor para a sobrevivência do indivíduo e sucesso da sociedade, apesar da escassez de evidências fortes que o suportem.

Se resolver o livre arbítrio, a ciência resolve o Homem
Sendo a ciência disciplina instrumental na transformação de dogmas em teorias testáveis, que podem ou não ser validadas, é neste momento oportuno discutir se podemos esperar que a ciência venha a resolver a questão da (in)existência de livre arbítrio. É inquestionável que a sequenciação do genoma humano e o estudo da função destes genes está a ter um impacto importante na compreensão do papel da genética no comportamento humano. Similarmente, o desenvolvimento substancial de técnicas de imagiologia, que permitem que alterações na actividade neuronal sejam correlacionadas com determinadas processos e acções, tem afectado significativamente a nossa visão acerca das relações entre o funcionamento da mente e a actividade química no cérebro. Mas a validação de uma teoria em favor do livre arbítrio requereria, no mínimo, um modelo científico subjacente. Contudo, e como defendido por Konrad Hinsen, tal modelo não pode existir pelas razões que de seguida exponho: O comportamento de uma identidade que possua livre arbítrio é, por definição, imprevisível. Ao invés do que se passa com fenómenos com um certo cariz aleatório, não chega a ser possível prever todas as propriedades estatísticas observáveis do comportamento de tal agente. Assim, um modelo científico para o livre arbítrio teria que incorporar alguma propriedade cuja natureza era imprevisível. Ora, o método científico, que se baseia na formulação de hipóteses que são depois testadas por observação e experimentação, não pode acomodar imprevisibilidade. A afirmação “a propriedade X é imprevisível” não pode ser testada por observação e como tal não é uma hipótese científica. E mesmo que a propriedade X seja observável, a sua imprevisibilidade torna impossível a formulação de hipóteses científicas acerca do seu comportamento. Como tal, o livre arbítrio não pode ser integrado num modelo científico. A única forma pela qual o método científico poderia resolver a questão da existência do livre arbítrio, seria então pela demonstração da sua não-existência. Tal demonstração implicaria um modelo científico que possibilitasse uma previsão completa do comportamento humano, ou pelo menos das suas propriedades observáveis. É importante salientar que este modelo pressupõe uma visão determinística do comportamento, o que tornaria o acaso numa mera ilusão.
Enquanto um céptico em relação ao livre arbítrio defenderia que na ausência de um bom argumento para acreditar na sua existência, deveríamos então aceitar a sua inexistência, um indivíduo com mente pragmática defenderia, que na ausência de provas sólida em contrário, deveríamos confiar na nossa percepção que nos diz que exercemos livre arbítrio. Contudo, e face à presente incapacidade da ciência para resolver esta problemática a única posição coerente para um seguidor do método científico é o agnosticismo em relação à existência de livre arbítrio.
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Ricardo Neto Silva (Porto, 1980)
Licenciado em Bioquímica pela FCUP. Como bolseiro do Programa Gulbenkian de Doutoramento em Biomedicina doutorou-se em Genética do Desenvolvimento pela Columbia University. Actualmente encontra-se a fazer um pós-doutoramento no Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud.