Atelier
da Bouça*
NOTAS SOBRE A PRÁTICA DO ACASO
A casa como laboratório espacial
Alguma
arquitectura apavora-se com o acaso!
Alguns projectos de espaços querem determinar completamente a vida que
neles decorre e decorrerá em todos os próximos tempos. Fazendo um paralelo ao
teatro, diríamos que desejam à partida conhecer e dar resposta tácita a um
argumento, uma narrativa completamente definida. Se essa narrativa não está
disponível à partida, torna-se também ela objecto de projecto na sua finitude. Entendendo
o acaso como algo que acontece sem ser consequência de algo passado, ou seja,
efeito que não se explica por uma determinação precedente, nestes projectos o
acaso é um drama, o pavor! Os espaços que eliminam a surpresa, que condicionam
e prevêem tudo, têm tanto medo das surpresas más (pouca confiança nas
capacidades do espaço) que eliminam qualquer hipótese de surpresa boa.
o acaso é
implacável!
O acaso existe e é impossível, além de ser escusado, desenhá-lo. Como
todas as profissões que gerem/lidam com o percurso das coisas no tempo,
ambicionamos projectar/condicionar o futuro, este desejo, sabemo-lo desde o
início, é irrealizável na sua completude, mas quem disse que nós queremos mesmo
prever tudo? Não podemos (nem conseguíamos se quiséssemos...) conhecer o acaso,
e condicioná-lo? Até que ponto? Até que ponto queremos fechar todas as saídas e
deixar uma família/instituição/comunidade enclausurada? O conforto não é a
possibilidade de acaso, a multiplicidade de apropriações, a máquina aberta à
sua manipulação?
a arquitectura
manipula o espaço do acaso
“A ideia de que a arquitectura deve facilitar todos os movimentos, de
igual maneira, é assumir que a arquitectura não toma uma posição filosófica,
por exemplo em relação à vida das pessoas, isso parece-me um disparate. Por
outras palavras, eu gosto mais de uma casa que me dificulta, ou que me põe
obstáculos para me impedir que faça coisas tontas e que me facilita movimentos
para fazer coisas sensatas.” [1] (Gonçalo M Tavares).
o acaso pode
informar o projecto de arquitectura
Tudo tendo tendência ao equilíbrio, as coisas tomam, naturalmente, o seu
lugar justo, isto é adequam-se aos rituais/movimentos que nós fazemos no tempo
e espaço:
"Observez un jour, non pas dans un restaurant de
luxe où l’intervention arbitraire des garçons et des sommeliers détruit mon
poème, observez dans un petit casse-croûte populaire, deux ou trois convives
ayant pris leur café et causant. La table est couverte encore de verres, de
bouteilles, d’assiettes, l’huilier, le sel, le poivre, la serviette, le rond de
serviette, etc. Voyez l’ordre fatal qui met tous ces objets en rapport les uns
avec les autres; ils ont tous servi, ils ont été saisis par la main de l’un ou
de l’autre des convives; les distances qui les séparent sont la mesure de la
vie. C’est une composition mathématiquement agencée ; il n’y a pas un lieu
faux, un hiatus, une tromperie. Si un cinéaste non halluciné par Hollywood
était là, tournant cette nature morte, en ‘gros plan’, nous aurions un témoin
de pure harmonie." [2] (Le Corbusier).
E se, apesar de separarmos o ser e o parecer, as nossas rotinas mudarem
mais depressa do que os objectos levam a assentar? E se não quisermos que o
conforto se instale perene e obtuso e, pelo contrário, pela disposição estranha
dos objectos, quisermos que o espaço nos faça/obrigue a mudar?
Intensificando,
“praticar o acaso” informa a prática do projecto....
Quando se passa de mero observador a jogador, quando exploramos os limites
da flexibilidade e refinamos/radicalizamos as nossas experiências
(laboratoriais), seguindo o método científico (problema – premissa resultante
da vivência - , hipótese – projecto que responde ao problema -, experiência –
construção do espaço -, observação – análise das vantagens e problemas que o
novo espaço impõe, levando ao estabelecimento de novas premissas) reunimos um
conjunto de informações passíveis de generalização e por isso úteis para
qualificar/garantir dispositivos de flexibilidade aos espaços que propomos.
É desta forma e com este objectivo que (Ab)usamos intensamente (d)a casa
como laboratório espacial... pelo prazer do acaso enquanto manipulador do pré
definido, ou apenas porque gostamos de recomeços.
IMAGENS
1 – nove variações sobre uma mesma casa. Plantas 1º piso
a b c
d e f
g h I
2– nove variações sobre uma mesma casa. Imagens.
A C C
E G G
H H I
*FILIPA DE CASTRO GUERREIRO e TIAGO
MACEDO CORREIA [ATELIER DA BOUÇA]
Nasceram em 1976, licenciaram-se na FAUP em 2000. Desenvolvem actividade
profissional desde 2001. Fundaram em 2008 o atelier da Bouça. Filipa é docente
de Projecto 1 e responsável pelo Pelouro da Comunicação da OASRN 2008-10. Em
2007 integraram a selecção '44 Young International Architects' Arquitectura
Plus (Grupo Via, Barcelona) e em 2008, 'Twenty Emerging Teams' Arquitectura Viva nº 128
EMERGENTES (Madrid). A dois (ab)usam (d)a casa como laboratório espacial,
partilham a obsessão pelo vazio enquanto matéria da arquitectura.
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