Pedro Levi Bismarck
A memória do presente
O imperceptível devir do espaço –
arquitectura, liberdade e amor
É a imprevisibilidade
que faz o acontecimento, mas é também a imprevisibilidade que faz o próprio
conhecimento. Não é aquilo que probabilisticamente se pode determinar mas é o
ponto improbabilístico que rasga o próprio véu do saber e mostra qualquer coisa
que até aí não fomos capazes de prever
Carlos Amaral Dias[1]
Prelúdio 1 : Palomar
O inquieto senhor Palomar[2] está
sobre o mar mas não o observa, fixa o olhar sobre uma onda, uma apenas. Tenta prever
todos os seus movimentos, a sua dinâmica inquieta. Precisa de encontrar uma
ordem, um esquema que lhe permita organizar toda essa complexidade. Não
desiste. Reduz o campo de observação,
regista todos os pequenos detalhes. Se conseguir será em breve capaz de prever
todos os movimentos e passar à derradeira fase: estender esse conhecimento ao universo inteiro. Mas a maré muda subitamente e o senhor Palomar
perde a paciência, regressando a casa ainda mais nervoso. Esta pequena metáfora
que Italo Calvino nos oferece sobre os modelos humanos de explicação do mundo é
aqui tão simples como magnificamente exposta. De facto, o homem constrói-se a
partir dessa vontade de controlar os fenómenos do mundo, de nomear e de lhes dar
um sentido. Projectar, investigar, planear são os nomes desses mecanismos de domínio
da realidade. Formas, operações de organização da vida quotidiana que traçam
esse percurso para uma artificialidade
especificamente humana. A casa-abrigo
não é o indomável território-onda, mas
sim o pequeno campo de observação das
coisas seguras e previsíveis. A casa faz-se sobre o signo da firmitas, da permanência, de um habitus capaz de nos colocar em segurança
com o mundo. Mas cada campo de observação
é apenas uma estação provisória e, tal como em Palomar, há sempre uma maré, um distúrbio iminente e
imprevisível. Toda a construção é provisional, contingente, assim é a nossa
essência humana, na morte para além da morte.
Préludio 2 : Un coup de dés
O que é irredutivelmente interessante no poema Un coup de dés de Mallarmé é que o acaso é uma metáfora que
nomeia não o objecto do poema, mas o seu irreparável propósito. O acaso que o
poeta francês assinala é a abertura improbabilística que se abre na
interpretação do seu próprio poema. O espaço branco que é deixado entre as
frases é o espaço do acaso, da interpretação, dos sentidos que se (o)põe em
cada leitor. Era esse também o sentido da palavra duchampiana infra mince, esse ínfimo pormenor, esse
mínimo evento capaz de dar um sentido provisional à obra de arte e transformá-la
não num objecto estético, mas num conteúdo provisório, num agenciamento de outros significados. E essa é também a busca
absoluta de John Cage, não a procura por uma nova linguagem, mas essa de abrir a música ao indizível mundo do
acaso, mas abrir como sinónimo de
libertação dos códigos tradicionais, para além do beco infindável das mimetologias académicas. Foi essa também
a procura última de Yago Conde, essa indeterminação precisa do sentido da
arquitectura. Mas uma indeterminação que não é a procura infinita do fortuito, mas
sim da precariedade própria da disciplina. Precariedade como provisionalidade contra a automatização dos discursos encerrados
em si próprios; precariedade como experimentação, questionando em cada momento
a arquitectura e os significados demasiado exactos que esquecemos já de
interrogar. Em suma: precariedade como uma forma de estar atento.
I. O espaço provisional - fazer(-se)
casa
Incerteza como imprevisibilidade
e indeterminação como provisionalidade são os sentidos da
palavra acaso que nos interessam aqui
reter, mas são também os significados que sobrevêm da origem etimológica desta palavra.
Casus, em latim, significava não
apenas um acontecimento, uma oportunidade, mas nomeava também o
próprio acto de cair, daquilo que
imprevisivelmente cai e que, por conseguinte, perece[3].
O que subitamente se torna relevante na digressão por esta palavra, é que
aquilo a que hoje chamamos casa tem precisamente
a mesma origem etimológica que acaso.
A casa para os romanos não era algo
sólido ou estável, mas uma construção provisória e precária, uma cabana, uma barraca[4].
Ora, que tenha sido esta palavra e não a palavra domus[5]
a nomear esse distinto lugar do habitar e da privacidade do humano frente ao
mundo, mostra muito da precariedade do nome e da acção que a palavra casa ainda hoje nomeia. Se a domus invoca desde logo essa acção
triunfante sobre o território e sobre a natureza, por outro lado, a casa traz consigo, e de forma bem
presente, essa precariedade e fragilidade não apenas da sua construção, mas do
próprio acto/evento do fazer-se habitar e do ocupar-se lugar para praticar esse
residir, esse estar-no-mundo.
Se como nos diz Heidegger, ir ao encontro das palavras é ir ao encontro do
mundo[6], e
se a teoria e o exercício da escrita são, antes de mais, uma caixa de ferramentas como o escreve Foucault,
então a questão é sempre o que podemos fazer com estes nomes e o que podem eles identificar e oferecer à nossa actividade
quotidiana? Neste caso concreto, as palavras advertem-nos que mesmo por detrás
da aparência e da solidez do nome casa,
esta é algo profundamente precário e provisório, mas que simultaneamente se faz
sobre essa provisionalidade. A casa-projecto como algo pré-definido,
acabado, deverá ser entendida antes como casa-táctica,
como algo que se pensa, desenha, reconhecendo a natureza provisional do espaço
e do tempo. Se o acaso tem algum
sentido enquanto experiência do mundo é o reconhecimento de uma dimensão
especifica da vida e do habitar que aparece toujours
improbabilisticamente, exigindo sempre atenção, resposta, mas sobretudo
invenção – a capacidade de escutar o imprevisível e ensaiar uma reacção. Porque
é precisamente aí, nesse espaço do confronto súbito que ocorre fora da rotina
do habitus, que se produz a essência
criativa do ser no mundo, onde este produz/encontra o seu próprio espaço de
acção e de liberdade. E quando isso acontece, quando esse espaço imprevisível e indeterminado se abre, podemos dizer que o
homem fez casa, ou talvez, fez-se a
si mesmo casa. O que a palavra casus nomeia é precisamente isso, essa
possibilidade que algo aconteça, e esse acontecer inestimável que a casa permite
e oferece é esse lugar do eu, do ser junto-às-coisas,
nunca sobre-o-mundo (como na domus), mas sempre provisionalmente,
indeterminadamente, abrindo-nos de uma forma sempre nova e livre às coisas. A
casa não é um simples suporte de rotinas, mas sim o praticável[7]
que permite que o ser ocupe um lugar no mundo, não para dele se esconder, mas
para a partir daí poder comunicar com ele. Que esse espaço não seja
determinável na sua forma, nem previsível no seu sentido, não é uma imperfeição
da casa, mas a sua dádiva, a
possibilidade última que possibilita a própria arquitectura, deixando sempre que
algo mais advenha, aconteça e possa ter um lugar no mundo, para além do mundo[8].
2. O espaço porvir - agio
Na paisagem tecnificada e
impositiva da realidade qualquer discurso arquitectónico sobre a casa terá de
reconhecer que esta é, acima de tudo, um processo aberto, uma táctica
provisória para uma conquista do lugar. E que o último reduto do privado não
deve e não pode ser uma submissão aos ditames burocráticos das leis, dos mercados
ou das imagens, mas deve ser sempre e cada vez uma reflexão-digressão sobre a
construção da liberdade individual no mundo e a construção de um espaço de
relação com o outro. É esse o sentido da palavra agio (à vontade), utilizada por Giorgio Agamben, que «indica de acordo com o seu étimo, o
espaço ao lado (ad-jacens, adjacentia), o
lugar vazio em que cada um se pode mover livremente, numa constelação semântica
em que a proximidade espacial confina com o tempo oportuno (ad-agio, ter agio) e a comodidade com a justa relação»[9]. Agio é o lugar do livre uso do próprio, é o espaço do porvir, daquilo que não estando determinado, nem estando destinado,
apenas a nós cabe cumprir e realizar[10]. É o espaço do nosso ser que é deixado em
suspenso, um espaço-acaso, um espaço-casa, que permanece por fazer e por vir. Não é o lugar do casuístico ou do fortuito, mas o espaço adjacente, indeterminado nas suas
margens e imprevisível na sua natureza, que se abre no limite do ser e permite
que este conquiste a sua singularidade,
esse seu lugar no mundo. Ter agio é
fazer(-se) casa, é conquistar a
intima fragilidade do mundo, mas é acima de tudo, o lugar-encontro que se faz na presença e na procura do outro, na partilha, na constelação semântica e na
simultaneidade provisional e única entre dois tempos e dois espaços. É
um verbo mais que um nome, uma acção mais do que um facto,
um espaço aberto e indeterminado que se faz mundo entre o homem e as coisas[11].
3. O espaço instante - a
memória do presente
Mas não será também o agio essa indeterminação
nos limites de cada objecto que Yago Conde procurava; os espaços brancos entre
as frases de Mallarmé; o silêncio imperscrutável da música de John Cage ou o infra mince de Duchamp? Esse momento
ínfimo e imprevisível que faz do encontro entre a obra de arte e o espectador
um evento plenamente individual e inter-subjectivo, para além de qualquer
sentido universal. A obra de arte abre-se ao acaso, à abertura e à aventura da
interpretação, e é o interprete-criador que dá o seu sentido último,
possuindo-a, destruindo-a, refazendo-a. E quando esse instante único se faz casus e se faz casa, dá-se precisamente aquilo a que podemos chamar o facto estético. Baudelaire escrevia que era a passagem
imediata da experiência à memória que concretizava o momento
estético (a memória do presente[12]);
mas não será esse momento o instante único
onde a experiência é simultaneamente
já memória, isto é, onde o presente é já o ausente, onde aquilo que vejo é simultaneamente aquilo que recordo? A sincronização absoluta e imprevisível
de dois tempos, o ínfimo paradoxo que faz com que algo se escape da escuridão e
seja, enfim, belo – não pela sua forma, pela sua proporção, mas por nos pôr
frente a frente com essa impossibilidade humana: recordar o que ainda posso tocar
e tocar aquilo que sei que vou recordar, que quero recordar. Que esse momentum
súbito, esse instante ínfimo possa acontecer e tomar lugar, disturbando os
limites da nossa linguagem e interrogando a nossa quotidianidade, abrindo um
espaço - um agio - de aproximação e
de encontro em direcção ao mundo, é esse o sentido último da obra
arquitectónica. Que isso aconteça imprevisivelmente, indeterminadamente e até
no mais ínfimo pormenor, apenas reforça a nossa confiança na capacidade e no
valor da arquitectura.
4. O espaço imperceptível – desvelando,
interrogando o real
Toda a produção artística exige de nós atenção e vigília, há sempre algo a
des-velar, a des-cobrir. Mas o verdadeiro conteúdo da revelação não é aquilo que
é por si próprio revelado, mas aquilo que esta, no seu silêncio, deixa ainda por
dizer. Isto é, não o que em si é inexpugnável à compreensão, mas o que é
deixado a mim para poder dizer. Também na obra de arquitectura assim o é: se
nada tiver sido deixado por dizer (e por
vir), então significa que nada afinal foi dito. Como escreve Agamben, «o
único conteúdo da revelação é aquilo que é fechado em si, o que é velado – a
luz é apenas a chegada do escuro a si próprio»[13].
Na digressão-em-viagem pelos
espaços de Álvaro Siza há sempre algo que fica por dizer, há sempre um
significado indeterminado, um gesto imprevisível que pede um outro sentido. A
lição fundamental de Siza não está no desenho ou no método, naquilo que
imediatamente vemos, mas naquilo que fica por
ver. Para Siza a arquitectura é, acima de tudo, um dispositivo crítico e
irónico sobre o exercício da quotidianidade. Cada edifício é em si uma reflexão
sobre a sua própria condição, cada edifício subverte a essência de si mesmo e interroga
a natureza da nossa relação com o espaço, com os programas, com o quotidiano.
Na paisagem distraída das rotinas diárias, Siza faz do espaço arquitectónico
uma experiência por vir, interrogando-nos
e provocando-nos, subvertendo o mais ínfimo pormenor e exigindo de nós toda a
atenção e disponibilidade, mas sobretudo, toda a vontade – agio. O traço
negro que circunda o Pavilhão Carlos Ramos; as escadas-percurso que dão acesso à Casa de Chá da Boa Nova; o vermelho-cor das paredes interiores do
cubo de entrada na Faculdade de Arquitectura, mas também essa perspectiva
acelerada do corredor, e em Berlim, o olho invisível do Bonjour Tristesse, guardam essa precisa indeterminação da
arquitectura, essa capacidade de provocar o imponderável, de interrogar, de
abrir um espaço na memória do presente,
rasgando o véu do saber e trazendo
sempre algo novo, impossível e belo.
Os poetas provençais fazem do agio um «terminus technicus» da sua poética,
que designa o lugar próprio do amor. Ou melhor, não tanto o lugar do amor,
quanto o amor como experiência do ter-lugar de uma singularidade qualquer.
Giorgio Agamben, A
comunidade que vem
Imagem
Nove memórias-registos (Le Corbusier, Villa Savoye, Álvaro Siza, Faup e
Bonjour Tristesse, Mies, Pavilhão de Barcelona e Neue Nationalgalerie, Steven
Holl, Kiasma.
[1]
Carlos Amaral Dias, programa Alma Nostra,
Antena 1 (20 de Abril de 2010).
[2]
Italo Calvino, Senhor Palomar.
[3] Casus está etimologicamente ligado ao
verbo cadere. San Isidoro de Sevilla,
Etimologias.
[4]
Idem.
[5] Domus é o domínio do senhor, daquilo que
foi domesticado. Ibidem.
[6] Para
Heidegger, compreender/pensar os nomes que se ocultam por detrás das palavras é
compreender/pensar a relação imemorial do homem com o mundo. CF. Heidegger, Das ding.
[7] Termo convocado por Manuel Mendes.
[8] Giorgio Agambem. Cf. A ideia do ter-lugar é desenvolvida no livro A Comunidade que vem.
[9] Idem, pp. 27.
[10] Agamben chama a isso a nossa possibilidade ética - o ethos - a nossa segunda natureza. Ibidem,
pp. 30.
[11] A expressão sentir-se
em casa assinala a forma verbal que faz a casa e amplifica o sentido provisional desta como algo que
acontece, através da produção momentânea de um espaço-em-que-se-pode-estar.
[12] Charles Baudelaire, Critique d’art suivi de critique musicale. A memória do presente
revela, em Baudelaire, o sentido efémero
do próprio presente, mas também retém a importância da experiência do presente como construção de uma memória singular.
[13]
Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, pp.117.
_________
Pedro Levi Bismarck (Porto, 1983)
Arquitecto pela Faup, Estudou e trabalhou em Berlim. Está actualmente a desenvolver a sua tese de doutoramento na Faup. Vive no Porto. www.spacingzyx24.blogspot.com
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