FA(I)LLING | Miguel Leal




Miguel Leal
FA(I)LLING

Try again. Fail again. Better again. Or better worse. Fail worse again. Still worse again. Till sick for good. Throw up for good. Go for good. Where neither for good. Good and all.
Samuel Beckett

Na manhã de 18 de Abril de 1976, quando navegava 100 milhas a sul da costa irlandesa, um barco de pesca galego avistou o casco semi-submerso de um pequeno veleiro de recreio que não chegava a ter 4 metros de envergadura. À deriva em mar aberto e sem sinais de ocupação recente, o barco foi encontrado na vertical, com a proa no fundo e parte da popa fora de água. No seu interior, entre vários outros objectos, descobriu-se um passaporte no nome de Baastian Johan Christiaan Ader. Tratava-se com efeito do Ocean Wave, o barco no qual, a 9 Julho de 1975, o artista de origem holandesa Bas Jan Ader tinha partido de Cape Cod, no Massachusetts, tendo como destino o porto de Falmouth, na Grã-Bretanha. Não era a primeira vez que Ader cruzava o Atlântico num barco à vela. Já em 1963, com 20 anos, depois de viajar à boleia por França e Espanha, tinha embarcado em Marrocos num veleiro que o levaria numa longa e atribulada travessia de 11 meses até San Diego, na Califórnia, com passagens pela Martinica e pelo Canal do Panamá. Estabelecido desde então em Los Angeles, para Bas Jan Ader a viagem do Ocean Wave era por isso mesmo uma espécie de retorno mais ou menos romântico ao lugar de onde tinha partido anos antes. No entanto, quando planeou enfrentar sozinho o oceano Atlântico numa arriscada aventura — e nunca antes tentada em tais condições —, Ader tinha como objectivo concluir o seu projecto In Search of the Miraculous e podemos por isso dizer que se tratava acima de tudo uma radical experiência estética. Apesar da adaptações que lhe foram feitas, o barco escolhido, um Guppy 13 Pocket Cruiser, um pequeno veleiro de recreio muito popular à época na Califórnia, não parecia o mais indicado para a travessia. Desafiar o Atlântico sozinho numa autêntica casca de noz foi para Ader apenas mais uma forma de ensaiar o difícil encontro entre a tragédia e a farsa, derradeira tentativa de levar ao limite o confronto com as ideias de risco, queda, fracasso ou desaparecimento que parecem dominar a sua obra.
In Search of the Miraculous era assim o gesto radical exigido a um artista que experimentou de um modo muito particular a tão reclamada fusão entre vida e obra que marcou as décadas de 60 e 70. Na verdade, Ader integrou a primeira geração de artistas conceptuais da costa leste mas desde cedo o seu trabalho mostrou uma dimensão poética que o aproximava da já longa tradição do Romantismo. Há, ainda assim, um lado absurdo e trágico-cómico que também permite relacionar a sua obra com as mecânicas específicas do burlesco. Observe-se, por exemplo, como Ader enfrenta a gravidade em dois curtos filmes de 1970 — Fall I e Fall II. No primeiro, vemo-lo sentado numa cadeira em cima de um telhado de onde acaba por cair no chão, desamparado e aos repelões; no segundo, pedala ao longo de um canal para cair bruscamente na água. Sem explicação aparente, as duas quedas são absurdas e estão talvez mais próximas da comédia splatstick de Buster Keaton do que da grande tragédia romântica. Por isso mesmo, o modo como Ader combina essa dimensão trágico-cómica com a melancolia evidente da sua figura solitária, em filmes como I’m Too Sad to Tell You, de 1971, no qual chora convulsivamente em frente à câmara, ou em Broken Fall (Organic), do mesmo ano, em que se baloiça pateticamente do alto de uma grande árvore até se deixar cair na água, transformam o seu trabalho numa variante singular da arte conceptual e, ao mesmo tempo, como alguém assinalou, numa síntese pouco comum entre a Europa e a América.
A primeira parte do projecto In Search of the Miraculous foi apresentada em Los Angeles pouco tempo antes da partida do Ocean Wave e o seu segundo momento deveria ter resultado da viagem solitária de Ader, para o que se planeava já, entre outras, uma exposição no Museu de Groningen, na Holanda. Ora, Ader veio a desaparecer algures no meio do Atlântico, naquela que é uma forma estranhamente topográfica de definir a ideia de interrupção e talvez a única que poderia em boa verdade completar um projecto que pretendia levar ao limite as ideias centrais da sua obra. Quando o casco do Ocean Wave foi encontrado, 10 meses após a partida de Cape Cod, estava já coberto de algas e moluscos e por isso estima-se que andasse à deriva há vários meses. Sabe-se apenas que se perdeu o contacto via rádio com Ader três semanas após a partida e julga-se que alguma coisa terá acontecido ao Ocean Wave já depois de ter passado os Açores. Os sinais encontrados no barco não foram suficientes para reconstituir o sucedido. O Ocean Wave foi trazido pelo pesqueiro galego para o porto da Corunha mas pouco tempo depois viria a desaparecer misteriosamente uma segunda vez, agora em definitivo. Do Ocean Wave não restam pois mais do que algumas imagens, ajudando a adensar o mistério em volta da última viagem de Bas Jan Ader.



Na Bienal de Veneza de 2005 Joachim Koester apresentou Message from Andrée, uma peça na qual podemos encontrar sinais da sua vocação de caçador de fantasmas. O ponto de partida de Koester foi a viagem falhada, em 1897, dos exploradores suecos Salomon A. Andrée, Nils Strindberg e Knut Frænkel, que queriam sobrevoar em balão o Pólo Norte. O balão, baptizado com nome de ave imperial — Örnen (Águia) —, partiu de Danskøya, perto de Spitsbergen, no Árctico, a 11 de Julho de 1897, mas ao fim de três dias, a poucas centenas de quilómetros do ponto de partida, caiu no gelo para não mais se levantar. Andrée, Strindberg e Frænkel andaram então à deriva sobre o gelo implacável do Árctico durante várias semanas até se instalarem, com a intenção de aí passar o Inverno, numa pequena ilha desabitada — Kvitøya [White Island] —, onde viriam a morrer em data incerta do mês de Outubro. O desaparecimento heróico da expedição ficaria envolto em mistério durante mais de trinta anos, até que em 1930 se descobriu, quase intacto, o acampamento montado em Kvitøya. Aí estavam os corpos dos três homens, os seus diários de bordo e as películas fotográficas nas quais Strindberg, o fotógrafo de serviço, fixou metodicamente as peripécias do pequeno grupo. À época, este achado improvável fez furor dentro e fora da Suécia, tendo a reconstituição das desventuras da expedição liderada por Andrée ajudado a alimentar o imaginário de muitos leitores. Joachim Koester não foi pois o primeiro a interessar-se pelas fatalidades e contingências do destino da expedição em balão sobre o pólo, mas fê-lo de um modo muito particular. A obra de Koester é povoada de assuntos obscuros e personagens estranhas, movimentando-se ambiguamente entre o documentário e a ficção; no entanto, o centro da instalação de Veneza não era tanto a história dos três aventureiros mas sim um filme em formato 16mm, mudo e quase abstracto. Dos rolos fotográficos especialmente preparados pela Kodak para a expedição, recuperaram-se cinco em 1930, já expostos, um deles ainda no interior da máquina. Surpreendentemente, após tanto tempo, logo na altura foi possível revelar quase uma centena de imagens. Alguns dos negativos, cobertos de manchas e riscos, tinham ficado praticamente ilegíveis, mas foram precisamente as marcas físicas do seu destino a prender a atenção de Koester. Para Message from Andrée, o artista filmou, frame a frame, as manchas importunas que povoam o branco de outro modo imaculado das paisagens retratadas nas fotografias de Nils Strindberg. O resultado final é paradoxal, silencioso e abstracto, qualquer coisa que pode ser descrita através do ruído que certos espectros sonoros ou visuais se mostram capazes de produzir. Koester optou por se concentrar nas qualidades plásticas das imagens, no preciso sentido de uma plasticidade que deriva directamente da abertura ao acaso e à mudança, ao acidente e à contingência. No filme somos confrontados com essa espécie de autonomia plástica da emulsão fotográfica que liberta as imagens de uma função documental e as isenta de qualquer valor de indexação. Foi portanto o potencial visionário e alucinatório dessas manchas mais do que a referência das fotografias a um passado trágico, que atraiu a imaginação de Koester. A deriva dos três homens sobre as placas soltas de gelo, com tudo o que isso tem de uma dramática psicogeografia e de um jogo com o acaso, encontra no filme um émulo visual de carácter telepático e alucinatório. Das desoladas paisagens do Árctico retratadas por Nils Strindberg restam no filme as manchas informes que o acaso produziu, e é precisamente esse ruído, essa música do acaso tantas vezes interpretada como erro ou falha incómoda, que constitui a substância da intervenção de Koester. Há pois um inconsciente que se esconde nas velhas e gastas películas encontradas em Kvitøya, um inconsciente sem o qual aquelas imagens não seriam o que são e que aparece no filme de Veneza como narrativa abstracta e silenciosa, singela homenagem tanto à desgraçada aventura sobre o gelo do Árctico como ao potencial auto-poético e imaginativo das coisas, em particular dessas manchas que ganharam vida própria e reapareceram à superfície como a derradeira mensagem de Andrée.


A sombra de Beckett e a circularidade implicada no bater sincopado do texto de Worstward Ho (1983) — Try again. Fail again. Better again. Or better worse. Fail worse again. Still worse again... — persegue-me há vários anos como marca possível de uma ontologia da própria prática artística. Não é coisa sobre a qual se possa escrever directamente e por isso recorri a um efeito de deslocação em que a referência à queda do Örnen e às manchas do filme de Koester são como que uma metonímia que me permite continuar falar da suspensão e do aparente fracasso da viagem de Bas Jan Ader. Através deste método espero que se possa descobrir que nenhuma das viagens falhou verdadeiramente porque o que importa é tentar outra vez para falhar outra vez, apenas para falhar melhor, de uma vez por todas ainda pior outra vez...

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Este texto foi em parte motivado pela exposição In Search of The Miraculous: Trinta anos despois, apresentada entre Maio e Setembro de 2010 no Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela. Com curadoria de Pedro de Llano, a exposição partia da ligação fortuita da história do Ocean Wave à Galiza para oferecer uma leitura abrangente da obra rarefeita de Bas Jan Ader.
Repare-se, a propósito da aventura do Örnen, que logo em 1930 saiu na Suécia o livro Med Örnen mot Polen, baseado nos diários de Andrée, Strindberg e Frænkel e ilustrado com algumas das fotografias recuperadas em Kvitøya, ainda que retocadas, de imediato publicado com sucesso em vários outros países (veja-se a versão americana em edição dirigida a um público juvenil: Andrée’s Story: From the diaries and Journals of S. A. Andrée, Nils Strindberg, and K. Frænkel, found on White Island in the Summer of 1930 and edited by the Swedish Society for Antrophology and Geography, Nova Iorque, Blue Ribbon Books, c. 1930). Para mais detalhes sobre a peça de Joachim Koester em Veneza ver o catálogo Joachim Koester: Message from Andrée, Copenhagen, The Danish Arts Agency, 2005.

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Imagens
1. Bas Jan Ader no Ocean Wave (Cortesia CGAC, 2010)
2. Os destroços do Ocean Wave. Detalhe do material documental da exposição (CGAC, 2010)
3. A estação de Örnen.
4. O Örnen imediatamente após a aterragem forçada a 14 de Julho de 1897. Fotografia retocada.


Miguel Leal  (Porto, 1967)
Artista plástico. Vive e trabalha no Porto. Membro fundador da VIROSE, uma estrutura interdisciplinar dedicada aos media e ao estudo das relações entre arte tecnologia. É professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), onde orienta
trabalho de atelier e lecciona cadeiras de arte e cultura contemporâneas. http://ml.virose.pt


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