NENHUMA ARTE É LOUCA. NENHUMA ARTE É ARQUITECTURA







Pedro Levi Bismarck
NENHUMA ARTE É LOUCA. NENHUMA ARTE É ARQUITECTURA. PUNCTUM.


No princípio não era o verbo, mas as imagens, ainda sem homens 
Bragança de Miranda, Corpo e Imagem
Desclassificando
Para Barthes a Fotografia é inclassificável, é invisível e é mathesis singulares: nada de «corpus», apenas alguns corpos (1). Mas será sempre, e sobretudo, uma aventura – a pressão do indizível que quer ser dito (2).


Studium-Punctum
O punctum é com o studium, segundo Barthes, um dos dois elementos essenciais que participam na leitura da imagem fotográfica. Se o studium é a leitura cultural e negligente do objecto (o campo da educação, onde reconhecemos as funções principais da fotografia), o punctum é o elemento que perturba o studium. É a ferida (a plaie), a picada, o corte profundo que se abre no espaço interior da imagem. É a casualidade que foge da composição. É aquilo que não procuro mas aparece, é o acaso que me perturba e que me abre ao abismo secreto das imagens. Aquilo que eu não vejo, que não quero ver, mas que posso tocar, que sei que vou tocar.
Se o studium é o que nos permite observar e compreender a fotografia, o punctum é a ferida sem a qual a imagem não pode sobreviver, a força de expansão que abre a fotografia. É o ponto-selvagem que a distingue, que abre espaço até à coisa observada. Mas é, sobretudo, o ponto onde deixo de ver pelo olhar do outro e me desloco; onde me liberto da fotografia para construir o meu próprio olhar. Como escreve Barthes, já não interessa o studium nem a sua retórica vulgar (técnica, reportagem, arte), apenas a subjectividade absoluta - o silêncio onde eu posso fechar os olhos e fazer falar a imagem (3). E nesse momento decisivo, como diz Barthes: “Sou apenas um selvagem, uma criança – ou um maníaco; ponho de lado todo o saber, toda a cultura, abstenho-me de ser herdeiro de um outro olhar” (4).


Punctum-singularis
Por outro lado, o punctum de Barthes é a irrupção do tempo na imagem, ou melhor, é o instante de reconhecimento do tempo na sua superfície indiferenciada. Isto é, o lugar absolutamente precioso e inalienável, em que a imagem passa a ser minha (onde eu a reconheço e inscrevo-lhe um sentido). Onde termina a sua universalidade e começa a sua subjectividade própria. Em suma: onde a minha imagem é finalmente livre – livre de se abolir, de se aniquilar. E é livre porque é agora minha. Digamos que o seu fim é a sua desconstrução como imagem e a sua reconstrução como potência (absolutamente subjectiva). É essa a sua condição mítica, o seu propósito alcançável, porque é aí que o seu poder cresce – na sua ausência, no irrevogável silêncio que fica após a sua passagem. “É o correr da imagem que cria o tempo, e o humano transcorre nesse deslizar da imagem sobre o «real», fazendo dele veículo da vida” (5). O carácter universal da imagem não é mais que uma ilusão, ela só existe enquanto mathesis singularis (6). E eu só poderei ser livre na medida em que conquisto a sua subjectividade e destruo (desconstruo) o que ela tem de pretensamente universal. O fim da imagem não pode ser outro senão o seu (próprio) fim.


Punctum-invisibilis
E este é também o sentido do punctum na imagem arquitectónica: a casualidade que escapa da composição, o ponto-selvagem que aniquila a imagem homogénea, universal e provoca o reconhecimento da realidade. O dispositivo poético que transforma a imagem em potência, que transforma a imagem em espaço – aberto, percorrível, experienciável. Um espaço absolutamente subjectivo e absolutamente próprio (o lugar livre do próprio) (7), sem mediação, sem representações a priori, mas representado no decorrer da sua acção espacial. Um espaço, como escreve Ignasi de Solá-Morales, constantemente produzido pelo instante e devorado pela acção (8).
Digamos que o punctum aquitectónico, é a ferida que se abre na imagem fixa e imutável, o pormenor que a abre e a destrói, e que nos dá o tempo na experimentação do espaço. Se a arquitectura começa na imagem, o seu fim é a destruição da imagem. E por isso o punctum é o momento decisivo onde a arquitectura deixa de ser imagem (pretensamente universal e pretensa representação) e se transforma num dispositivo poético activo de hábitos, de movimentos, desejos, do (in)esperado e do (im)possível. Um sistema de acontecimentos, como diz Ignasi, que trabalhará sobre categorias nunca fixas mas sim cambiantes, que potenciem a experiência múltipla e o reconhecimento do mundo. E por isso, a arquitectura é assim o jogo constante da acção espacial a aniquilar as representações puras e planas, a acção contínua sobre o espaço, o instante imprevisível do corpo e da matéria. Ela será sempre, como diria Jorge Luís Borges, a fruta e a boca simultaneamente.
Se o punctum dá-nos precisamente aquilo que de invisível tem a imagem. A beleza singular da arquitectura podemos encontrar naquilo que ela tem de mais enigmático que é, precisamente, aquilo que ela tem de absolutamente não-representável. Aquilo que a distingue da arte, ou das outras artes, e que faz a sua mais íntima poiesis, isto é, o movimento poético dos corpos e da matéria na conquista sempre efémera da interioridade, do ínfimo lugar do ser, na morte, para além da morte, no amor. O momento onde a arquitectura passa a ser invisível, silenciosamente invisível - o silêncio onde eu posso fechar os olhos e fazer falar a minha imagem, as minhas próprias imagens.


Punctum-locus
Mas para Barthes o punctum é, ainda, esse ponto louco que nos permite tocar a realidade, que me desloca selvagem e sem cultura dentro dela. Louco porque dá a realidade sem mediação, porque ele confirma escandalosamente que aquilo que vejo existiu realmente (9). Mas louco também, como escreve Barthes, porque a fotografia está para além dos códigos de representação, não quer ser restituição, não quer ser catarse, não quer transformar o luto em trabalho. A fotografia é a terrível presença do real perante nós, selvagem, descodificado, simples (e eu digo: belo). E por isso, segundo Barthes, o esforço último da sociedade tem sido precisamente a tentativa de tornar a Fotografia séria, combater a sua (ir)realidade e temperar a loucura selvagem que ameaça cada imagem. E fê-lo, por um lado, ao fazer da fotografia uma arte (porque nenhuma arte é louca) e por outro, ao banalizá-la, generalizá-la, “porque generalizada, ela desrealiza por completo o mundo humano dos conflitos e dos desejos, sob o pretexto de os ilustrar” (10).


Punctum-fugit
E por isso a pergunta formulada no derradeiro parágrafo de La chambre claire: Louca ou séria? A fotografia pode ser ambas, diz Barthes: “séria, se o seu realismo permanecer relativo, temperado por hábitos estéticos ou empíricos, ou louca, se esse realismo for absoluto e se, assim se pode dizer, original, fazendo regressar à consciência amorosa e assustada a própria marca do Tempo” (11) . Mas não é esta, também, a mesma pergunta que podemos dispor sobre a arquitectura? Isto é, séria se não questionar os hábitos estéticos ou empíricos, se for a mimetização sem espessura das imagens; ou então louca, se quiser ir para além do studium, se for absolutamente realista (isto é, procurar antes de mais a compreensão da realidade), se trabalhar sobre a matéria do espaço e o corpo do tempo. Porque a ferida (e o drama) do punctum architecturae é precisamente este: o reconhecimento que não nos bastam as regras e os códigos do studium (eles não transformam a folha em branco em projecto, nem transformam por si, o desejo em realidade, a imagem em potência e em espaço). Será sempre preciso a abertura inclassificável, invisível, singular, e imediata (sem mediação) do punctum, onde somos nós selvagens e sem cultura em frente ao mapa louco da realidade. Mas o único ainda que nos dá a possibilidade (im)possível, a aventura indizível, de aceder e compreender a realidade (e o próprio studium), onde nos abstemos de ser o olhar do outro e onde conquistamos nossa irreparável interioridade (e individualidade) – o nosso ponto-de-fuga (o nosso punctum-fugit). Porque se a loucura da fotografia está em ser a terrível presença do real, a da arquitectura está em ser, ela própria, produtora do inominável real. Para além da sua arte e para além da banalização das suas imagens, essa é a sua loucura. E por isso, como escreve Barthes, neste mundo de imagens cada vez mais sedutoras, mas mais temperadas e homogéneas, cabe-nos a nós escolher: “submeter o seu espectáculo ao código civilizado das ilusões perfeitas ou então enfrentar nela o despertar da inacessível realidade” (12).


Epílogo: as imagens no início
Vejo as imagens incessantes de Vertov, mas não as vejo. Eu agora estou do outro lado. Sou a própria máquina. Sou a própria câmara. Estou dentro delas. Sou dentro delas. E esqueço. Esqueço-me do seu tempo. Esqueço-me do seu limite. Esqueço-me que são imagens. Sou a própria câmara. Sou a própria lente. Eu agora sou Vertov. (13)

Notas
1 Inclassificável, porque essa classificabilidade seria necessariamente redutora. Invisível, porque ela é uma apresentação da realidade e não uma representação. Singularis, porque qualquer discurso nunca poderá partir da Fotografia mas sim da(s) fotografia(s). Barthes, Roland. A câmara clara, pág. 16.
2 Idem. pág. 27.
3 Ibidem, pág. 64.
4 Ibidem, pág. 60.
5 Bragança de Miranda, José A., Corpo e Imagem, pág. 12
6 E esse é precisamente o problema do espectáculo contemporâneo da imagem: há mais imagens do que aquelas que podemos destruir. Consumindo apenas algumas deixamos o restante acumular-se, opacizando as margens do real. Cfr: Susan Sontag, Sobre la fotografia e Bragança de Miranda, Corpo e Imagem.
7 Agamben, Giorgio, A Comunidade que vem.
8 Solà-Morales, Ignasi, Arquitectura líquida, pág.133.
9 Barthes, op.cit. pág. 92.
10 Idem, pág. 129.
11 Ibidem, pág. 130.
12 Ibidem, pág. 130.
13 Sobre Dziga Vertov.


Sequência ilustrada a partir de:
Dziga Vertov, The Man with the Movie Camera, 1929.
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Pedro Levi Bismarck (Praia da Granja, 1983)
Arquitecto pela FAUP. Estudou e trabalhou em Berlim. Está actualmente a desenvolver a sua tese de doutoramento. Vive no Porto, mas prefere Berlim. www.spacingzyx24.blogspot.com

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