Álvaro Seiça Neves
A HIPERPERIFERIA DO PONTO
PARA UMA DEFESA
DA RAPOSA
Ponto
P
Citar
Roland Barthes, sempre que se trata da análise de fotografia, tornou-se como
que o açúcar imprescindível sem o qual o café não pode ser bebido. Qualquer
reflexão sobre fotografia, que se quisesse autolegitimar (como modo de nos
confirmar – eu não gosto de confirmações), ou que se quisesse empolar séria e
erudita, incluiria sempre uma referência à obra La Chambre Claire (1980).
Ora, os que gostam do café sem açúcar, decerto perceberão que deveremos ir para
além das noções de studium e punctum. Abandonando
os conceitos latinos de Barthes, chegamos a uma palavra grega [1], periphéreia, como modo
de observar a imagem fotográfica, como modo de pensar a sua especificidade.
Na
fotografia existem focos de interesse que estão associados não ao punctum,
mas à sua periferia. Nesta periferia do ponto, nesta zona de vizinhança,
encontram-se pormenores que são mais sintomáticos do que o punctum (picada).
Se pensarmos que existem várias zonas periféricas e que se distribuem pela
imagem como um mapa-mundo com focos de incidência de temperatura – oscilando
entre zonas quentes e zonas frias, mas sempre com focos nas zonas mais quentes
e nas zonas mais frias, nunca um ponto, mas sim uma zona de vizinhança,
poderíamos designar estas zonas de hiperperiferias do ponto.
É
na vizinhança de um foco, ou nas vizinhanças de vários pontos focais, que
surgem as informações mais relevantes de uma imagem fotográfica. O punctum,
que até então era central e axial, mas não obviamente o centro geométrico da
composição, permuta o seu fulcro por uma posição instalada na periferia.
Ponto
V
Num
ensaio escrito em 2006, As intersecções das descontinuidades, a
propósito de uma leitura de Contingency, Irony, and Solidarity (1989),
de Richard Rorty [2], defendi
que dois textos – um texto fonte ficcional e um metatexto, que surge de uma
análise crítica do primeiro –, quando comparados, quando colocados em
intersecção, jamais poderiam resultar num ponto. Quer fossem vistos como plano
e recta, quer como recta e recta, a intersecção dessas duas massas em
progressão seria sempre um perímetro de possibilidades, cuja
«…
substância não será mais do que a estrutura da ambiguidade, a relação com o
intocável. Nesse perímetro de possibilidades, acontece o encontro das leituras.
É aí que um universo microscópico se autonomiza e se revela com muita
dificuldade, ou melhor, com a sagacidade da persistência.»
Obtemos,
«assim,
uma imagem do processo de encontro de duas obras ou de duas leituras,
entendidas como se fossem duas rectas, como se fossem continuidades que se
querem intersectadas. Essas continuidades possuem espaços vazios, descontínuos,
e é nesses espaços vazios que ocorre a vizinhança, a adivinhação da
proximidade. O lugar, que não é lugar, pois trata de tempo e
de modo, pode significar não a habitual característica ambivalente
da correspondência entre autores – feita de reproduções, de simulacros em
diapositivo – mas, antes, a interpretação apreendida nos negativos da matéria.
É que não só de visibilidade se faz o comum, nem tão pouco se consegue deduzir
com clareza e precisão suficientes esse tal espaço de semelhanças. Daí perder
sempre o intuito de objectividade, aquele que tentar sumas
aproximações ao evidente.»
Este metametatexto (sem
querer ser ridículo), erguendo a periferia (vizinhança) ou a rede de
periferias como figuras de análise textual, aproxima-nos da formulação do ponto
P, no sentido de um modelo crítico de compreensão e reflexão.
Ponto
R
Porquê
a raposa e não o cavalo? Porque nos ensinaram que o cavalo era bom e que se
podia montar, que se podia domesticar. Porque nos ensinaram que a raposa era má
(sem nos contarem que, na batida à raposa, se ganhavam uns cobres de pele
esfolada para curtumes). Porque nos ensinaram que a raposa rouba, que ser raposa é
ser matreiro. Raposa é ser raposa: é o substantivo com qualidades
de adjectivo, que nos soletrava que seríamos sorrateiros, que passaríamos pela
sombra no dia solarengo, para tentar usurpar a caça, para varrer os ninhos
rasteiros e os ovos brilhantes, e para abocanhar, com uma grande mandíbula, o
pescoço de um jovem borrego. Mas se refutarmos este processo mental
alter-adquirido, ou se tentarmos desconstruir a pedra que dentro se formou,
para reconstruí-la em mosaico, poderíamos pensar que não interessa tanto se
quem fica bem na história é o cavalo ou a raposa. Que nem tudo o
que é domesticável é imediatamente bom, ou relevante. Que não interessa tanto o
ponto A, em que a raposa está imóvel, nem o ponto B, em que a raposa está já
com uma lebre entre os dentes, numa passada veloz, pela sombra. Já não nos
interessa tanto esse ponto B, de chegada, de aceleração malévola. Interessa-nos
o trajecto entre o ponto A e B. Interessam-nos as possibilidades do
trajecto, aquele em que a raposa matou a lebre e aquele em que a raposa apenas
se passeou nas planícies – observar o trajecto como potência e não como acto.
Ter esse trajecto como pergunta – seja o da raposa, seja o da fotografia, seja
o da literatura, da arquitectura, da dança, do cinema ou da música. Para uma
defesa do trajecto é necessário erguer uma defesa da raposa.
Chegados
a este ponto, podemos concluir que o trajecto é uma das características mais importantes
na arte. A alegoria da raposa demonstra-nos que temos que aprender a desconfiar
das nossas crenças e a evitar o automatismo. Pensem num concerto de música
clássica. Pensem na plateia. Pensem no público. Quando os nossos ouvidos mal
temperados pressentem um silêncio (ponto) na música (trajecto), o cérebro
recebe um anti-estímulo (impulso), desatando a dar ordens imediatas de palmas
estridentes. Tornam mais relevante o ponto de chegada (silêncio) do que o
trajecto (música). Daí que a peça 4’33’’ de John Cage seja tão
incomodativa e os minúsculos ruídos externos à composição, outrora silenciados
pelo som emanado da orquestra, ganhem tanta relevância – o cérebro não suporta
o silêncio; tem que o interpretar, tem que o encher, dar-lhe uma forma concreta.
O cérebro não aguenta o vazio.
Plano
Assim
que o ser humano conseguir inundar as zonas costeiras e deixar pouco território
habitável, vendo-se, portanto, compelido a colonizar com urgência outros
planetas, assistiremos ao que se passa já, mas numa escala reduzida, em
Espanha, Portugal e em muitos países. Em Espanha, nas cinturas das zonas
urbanizadas, acontece uma forma de cirurgia arqueológica muito curiosa. Com a
ajuda de um bisturi descuidado, conseguem-se gerar rotundas especializadas num
determinado período histórico: ora se autonomiza um portão do séc. 19, ora se
secciona uma ponte romana definhada. Em Portugal, uma breve viagem por uma
velha estrada nacional, pontuada por lugarejos, logo nos devolve um
magnificentíssimo museu ao ar livre – o museu mais genuíno de todos, aquele que
reflecte à escala 1:1 a longa história do ser. Aí podemos encontrar vestígios
de modos construtivos idosos, edificações obsoletas, assim como modelos de
carros entretanto descontinuados e a história compilada das últimas décadas de
sinalética, publicidade e logótipos. No futuro, o espaço museu tenderá
a desaparecer e, na ânsia de uma sociedade de entretenimento mais do que de
reflexão, substituir-se-á o museu pelo parque temático. Os futuros seres
humanos, carne e osso com prótese, terão viagens turísticas organizadas para
visitar pontos do velho planeta, num misto de nostalgia e pipocas. Poderão
visitar restos de grandes metrópoles e zonas totalmente desabitadas. Os seus
passeios turísticos esquecerão a micro-escala, para abraçarem a macro-escala,
em viagens de intuito histórico e lazer.
As
cidades do futuro não mais assentarão num centro nevrálgico, pontuado, mas
serão ligações entre as periferias desse ponto antigo, aglomerados de
periferias indistintas – a conurbação será a figura estilística destas massas
ininterruptas, sem fronteiras. Se pensarmos numa urbanização (colonização) fora
do planeta Terra, esta tendência será ainda mais evidente, se atendermos ao
facto que o modo de pensar a cidade já não será descrito como pensar a cidade,
mas sim outra tipologia espácio-urbanística. Essa tipologia viverá de conexões
entre espaços reais e virtuais. O centro deixará de prevalecer, para dar
primazia ao trajecto (pelo trajecto) e à conexão. O ser humano, indivíduo
aparentemente mais livre, será empurrado para estar em contínua deslocação
entre espaços; será empurrado, através de antropodutos e infodutos [3], para a não-fixação, para a
não-reflexão, para a ubiquidade, para responder a diferentes estímulos sociais
de modo simultâneo e instantâneo, sem barreiras definidas de espaço-tempo.
Desenvolver-se-á uma sociedade de condução, no espaço e para o Espaço, que
estará em permanente movimento, sempre deslocada – uma sociedade entre pontos,
uma sociedade que não permanecerá num dado ponto (sedentária), mas que estará
em trânsito entre pontos (nómada).
O
ser humano estará a actualizar o seu perfil virtual, isto é, a viver o seu eu
replicado virtualmente, de modo mais veloz do que o seu perfil real requer.
Assistiremos ao indivíduo virtual, ausente do corpo.
Junte-se
a este último parágrafo uma análise lúcida da sociedade actual, adicione-se a
leitura de toda a obra de Paul Virilio, adicione-se ainda ficção científica
q.b., mexa-se devagar, em lume brando e com sapiente manuseio. Reflicta-se!
Notas
1
A cultura helénica sempre me seduziu e interessou muito mais do que a cultura
latina: os Romanos, piores do que os povos Bárbaros (e note-se que bárbaro se
converteu em sinédoque, pois generalizou-se no léxico contemporâneo como
primitivo, rude, brutal; facto que não difere muito dos próprios Romanos,
curiosamente!), ou seja, Bárbaros disfarçados, foram figuras brutas vestidas
com fato emprestado (de marca Hélade).
2
Rorty, por sua vez, faz uma leitura das obras de Orwell e Nabokov.
3
Entenda-se por antropodutos não só os elevadores até pontos estacionários no
Espaço, famigerados pela ficção científica, mas também os condutores de seres
humanos num espaço urbanizado, sem que para isso sejam necessários veículos tal
como os conhecemos. Os infodutos (repare-se que, para tratar de uma dimensão
material e tecnológica, logo surgem compostos latinos), que incluem os
condutores de informação já existentes (televisão, internet, telecomunicações,
…), sofrerão uma grande mutação, dificilmente adivinhável, mas que incluirá os
hologramas tridimensionais de transmissão (em tempo real).
_______________
Álvaro
Seiça Neves (Aveiro, Portugal,1983)
Álvaro
Seiça Neves escreve sobre o poder da ficção. Nasceu no Porto, embora tenha sido
registado em Aveiro. Ora, se até o seu Bilhete de Identidade é falso, como será
a realidade? Edita a BYPASS, com Gaëlle Silva Marques. Vive em Évora.
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